HISTÓRIA DO D. CONSTITUCIONAL

História do Direito Constitucional

Por: Gabriela Faggin e Osório Barbosa, revisão Luiz Rollo

 

 

 

"A vida só pode ser compreendida olhando-se para trás;

mas só pode ser vivida olhando-se adiante." Kierkegaard.

 

 

 

história - tábua

 

 

Como tudo que é [e é] história, a história da humanidade se perdeu nas brumas do tempo.

 

Mas o homem pode e deve conjecturar em busca de sua própria identidade.

 

Marco Antônio Casanova1 afirma: “ao contrário, filosofar implica antes um retorno sempre renovado às determinações primordiais de um caminho de pensamento, à origem que nunca permanece isolada em um passado desprovido de sentido, mas que sempre participa ativamente das decisões do futuro. Filosofar é, em suma, ser iniciante, porque filosofar envolve uma constante retomada daquilo mesmo que inicialmente levava a pensar”. E, mais: “não há nenhum início que seja exatamente como um outro, assim como não há nenhum retorno ao início que não seja um retorno ao modo particular como o início se deu. Por isto, se quisermos entender o percurso característico de Martin Heidegger, é preciso considerar o modo como o seu início se deu”.

 

Sendo assim, nos é lícito, com apoio no conhecimento que dispomos, fazermos algumas considerações que nos afiguram não tão absurdas assim, como pode parecer à primeira vista. Portanto, nesta história, iremos olhar sim para o passado, a fim de que possamos compreender o presente e tentar projetar o futuro. Logo, parafraseando Casanova, “se quisermos entender o percurso característico do constitucionalismo, é preciso considerar o modo como o seu início se deu”.

 

Com os instrumentos que a ciência disponibiliza para a medição da existência (como o carbono 14, por exemplo) afirma-se que:

 

a) o planeta Terra data de bilhões de anos,

 

b) o homem data de milhões de anos,

 

c) a agricultura data de 10 (dez) mil anos,

 

d)  a escrita (a forma mais antiga e segura de transmissão de conhecimento), que data de apenas 5 mil anos, sendo o seu berço a Suméria, região sul da Mesopotâmia (atual Iraque) nasceu com a escrita cuneiforme (eram escritas com cunhas) (o Código de Hamurabi, que está no museu do Louvre, em Paris, obviamente, foi escrito em cuneiforme) :

 

Escrita Cuneiforme

 

O homem é um ser gregário por natureza, não sobrevivendo, após o seu nascimento, afastado de outro ser humano por mais de algumas horas, pois necessita de cuidados constantes, sendo as lendas em que animais cuidam de ser humano mera criação intelectual do próprio ser humano. Rômulo e Remo são meras alegorias.

 

Se aceitamos a tese do parágrafo anterior, temos que admitir que núcleos humanos (formados, pelo menos, por pais e filhos, avós e bisavós) sempre existiram. Ora, esse gregarismo implica trazer para o núcleo familiar menor outros núcleos familiares, especialmente via casamento, o que aumentou o tamanho desses núcleos. É fácil intuir que em quaisquer desses núcleos sempre existiu uma autoridade, seja da mãe ao proibir o filho de se aproximar do abismo ou do lago infestado de jacarés, por exemplo, seja do pai, seja do ancião, do curandeiro etc.

 

Não é outro o pensamento de Eric Hobsbawn:

 

“Mas, ao mesmo tempo, este processo de emancipação do homem em relação às suas condições naturais originais de produção, é um processo de individualização humana. "O homem só se individualiza (vereinzelt sich) através do processo histórico. Surge, originalmente, como um ser genérico, tribal, um animal de rebanho... A própria troca atua como um agente fundamental desta individualização. Torna supérfluo o animal gregário e o dissolve." (p. 90). Isto determina, automaticamente, transformação nas relações do indivíduo com o que era, originalmente, a sua comunidade. A antiga comunidade transformou-se, no caso extremo do capitalismo, em um mecanismo social desumanizado que, embora torne possível a individualização, é hostil e estranho ao indivíduo. Apesar disso, este processo encerra imensas possibilidades para a humanidade. Como observa Marx num trecho pleno de otimismo e profundidade (p. 80-81)”2.

 

Ora, esses núcleos menores estavam como não pode deixar de ser, situados em um determinado território.

 

Temos então: povo, território e autoridade, exatamente os três requisitos necessários para a existência do que se passou a chamar de Estado Moderno. Assim, a forma embrionária deste está mais longe do que a doutrina costuma admitir normalmente.

 

Giorgio Balladore Pallieri afirma que “a data oficial em que o mundo ocidental se apresenta organizado em Estados é a de 1.648, ano em que foi assinada a Paz de Westfália3 ”.

 

Bertrand de Jouvenel irá discordar de Balladore Palliere, ao afirmar “a organização administrativa criada depois do brumário4, no intuito de possibilitar a execução da vontade dos governantes (...) ajudará a esclarecer a passagem ao Estado moderno”, e prossegue “mas o brumário também representa um grande começo: o Estado moderno, que se caracteriza por uma poderosa estrutura administrativa que se estende por todo o país e torna unipresente a vontade do poder central” (As Origens do Estado Moderno – Uma história das idéias políticas no século XIX. Editora Zahar. Rio de Janeiro: 1978, pp. 9/10).

 

Acrescenta ainda Jouvenel: “o Estado napoleônico será mais ‘moderno’ que qualquer outro, no meu entender, os Estados de nossos dias guardam com ele uma semelhança muito maior que a que os liga ao modelo inglês e americano de 1800” (Idem, p. 83).

 

Lenio Luiz Streck irá dizer: “que o casamento do poder político com o capital privado foi um fator decisivo na origem da Modernidade e do sistema capitalista”, (Jurisdição Constitucional e hermenêutica – Uma nova crítica do Direito. Livraria do Advogado. Porto Alegre: 2002, p. 60).

 

Fazemos, desde já, uma pequena observação quanto ao uso do termo Modernidade. Autores tidos como modernos como Nietzsche e Heidegger, por exemplo, foram buscar inspiração para seus trabalhos nos gregos, e nada mais antigo, atual e moderno que os velhos gregos. Quanta contradição!

 

O que se tem observado é um aparente desprezo pela criação coletiva, geralmente, de forma inconsciente.

 

Assim é que autores tidos por modernos se apropriam de conhecimentos antigos e com um leve verniz tentam dar brilho ao que já tinha brilho, esquecendo muitas vezes de sequer dizer da fonte na qual se abeberaram.

 

Fazem nada mais que “verter vinhos velhos em odres novos”, como diz Pablo Lucas Verdú, Teoría da la Constitución como Ciência Cultural, Dikinso, Madri: 1998, p. 23.

 

É certo que o pensamento (popular ou o científico) não nasceu com os gregos, estes mesmos falam em seus escritos dos babilônios e egípcios, basta ver Herôdotos5 na sua obra História. O mérito grego, no entanto, está em ter registrado para a posteridade o pensamento próprio e de outros povos, muitas vezes não dizendo qual pertence a quem, restando, assim, como deles próprios algo que pode ser de outros povos.

 

Já se disse: “quer ser moderno, leia os gregos”.

 

O movimento patrocinado pela burguesia enriquecida para limitar o poder real vai se abeberar na fonte grega e lá encontrar o instrumental de que necessitava para inverter a dominação do poder político. Tirá-lo do rei e assumirá ela própria ou por seus representantes o dito poder.

 

Percebeu a burguesia que, se era ela quem pagava as contas, bancava os reis e seus soldados (“os custos da comunidade (maior), isto é, a guerra, os serviços religiosos etc.”, dirá Marx), por que ter esse intermediário no exercício do poder? Por que não ela própria (ou por quem lá colocasse) desempenhar o poder estatal?

 

Quem paga as contas costuma dar as cartas. Isso é observável no próprio seio familiar. O homem, até recentemente, era o chefe da família por ser ele quem a provia. Agora, com a entrada da mulher no mercado de trabalho, a relação se equilibrou e, em alguns casos, se inverteu, pois a mulher, junto com as virtudes, levou também os defeitos masculinos.

 

Eis como Marcos Juruena Villela Souto6 resume a assunção do poder pela burguesia:

 

“A primeira noção que temos de Estado é a das Cidades-Estado gregas e romanas, em que um grupamento social, em um determinado território, atribuía os poderes que cada indivíduo tinha na sociedade para uma terceira pessoa que seria encarregada da limitação da liberdade individual em prol do interesse coletivo; essa era a noção básica de Estado, de um Estado mínimo, atualizada na Revolução Francesa. Na Idade Média, quando o poder do Rei foi atenuado, uma nova técnica de produção assume a orientação da vida em sociedade. As pessoas buscavam proteção em torno de líderes que iam se formando dentro dos Feudos; estes sustentavam o Rei ao lado do Clero, o que dura até o meio da Idade Média, quando a peste abateu a Europa entre os anos 1400 a 1500, dizimando populações e empobrecendo aqueles que sustentavam o Estado, forçando-o a procurar uma nova fonte de financiamento.

 

Essa nova técnica de financiamento das ações do Estado, basicamente do Rei, vem com uma classe social que não se situava nos feudos e sim nas cidades, conhecida como burguesia, que não tinha, até então, nenhum papel relevante na sociedade; eram os comerciantes que atuavam quando se levava a produção excedente para troca nas praças de comércio, que foi acumulando capital o bastante para poder sustentar o Rei no período pós-peste.

 

A partir do momento que o Rei depende do capital burguês para fazer funcionar seu reinado, a burguesia começa a ter algum tipo de participação; mas, para consolidar essa participação na sociedade, era preciso refortalecer a figura do Rei, enfraquecida durante a Idade Média pela figura dos senhores feudais. Tal fortalecimento ocorreu de maneira, muitas vezes, violenta, até o Rei se achar o representante de Deus na terra; tem-se, aí, o advento do Absolutismo. A defesa do Estado forte incluía aumento de seus territórios, armamentos e riquezas. A partir do momento em que o Estado forte é o Estado rico, buscando descobrir novas terras, não só com o intuito de ampliar os seus limites, e sim para aumentar as suas riquezas, com o comércio de especiarias, começa a ocupar um espaço que era anteriormente ocupado pela burguesia.

 

Nesse momento, começa o questionamento do Absolutismo, culminando com o advento da Revolução Francesa7, quando se consolida a idéia de que o governante recebe o poder do Estado, poder este que pertence à sociedade e não a Deus; a separação entre o Estado e a Igreja faz com que existam duas ordens de poder, o poder divino, hoje representado pelo Papa, e poder terreno, representado pelo Governante, este atribuído ao Estado pela sociedade.

 

Com a Revolução Americana tem-se o advento do constitucionalismo e com o advento da Revolução Francesa, a noção de que a soberania decorria do povo e os poderes deveriam ser exercidos por pessoas distintas (portanto, se o Estado linha urna função de legislar, administrar e dirimir conflitos de interesses, essas três funções deveriam ser exercidas por pessoas distintas). Mais que isso, esta tem o condão de delimitar o papel do Estado intervir no domínio econômico, especificamente, de vedar ao Estado o exercício de atividades econômicas”.

 

Se “todo Estado tem constituição, que é o simples modo de ser do Estado”, diz José Afonso da Silva (Curso de Direito Constitucional Positivo - CDCP, p. 37), Aristóteles já tinha percebido isso há cerca de 500 anos a.C. Tanto assim, que estudou a constituição de várias cidades-Estados gregas, restando preservada apenas, infelizmente, a de Atenas8. É do grego, em seus escritos, a “idéias de Teoria da Constituição”109. Aliás, Aristóteles foi precedido, no que concerne à idéia de superioridade constitucional, até por teatrólogo, como se demonstrará logo mais.

 

Por que, então, pensará a burguesia, não aproveitar o que os gregos já perceberam?

 

A idéia de limitação do poder e a busca pela sua implantação vai sendo maturada ao longo do tempo. Várias experiências podem ser vistas ao longo da história como capazes de embasar aquele objetivo. Exemplo disso temos:

 

Com os gregos, temos:

 

“A reforma de Efialtes gerava um grande perigo. Até então, as leis fundamentais estavam cercadas de forte proteção; o Areópago10 era, com a Boulê11, uma das âncoras lançadas pela nau do Estado. Se não se tomasse cuidado, as leis chegariam a um ponto onde nada mais teriam de fixas e se mostrariam incapazes de oferecer proteção contra os ventos inconstantes da opinião pública. Esse perigo foi claramente visto por Péricles, que também descobriu o meio de afastá-lo. A ação criminal por ilegalidade, a graphê paranómôn, colocou a lei acima dos caprichos populares e das lutas civis, autorizando que qualquer cidadão viesse em seu socorro como acusador e oferecendo sanções capitais como caução da sua soberania.” (Gustav Glotz, A cidade grega, Difel, São Paulo, 1980: p. 105).

 

Mauro Cappelleti12, assim explica o sobredito:

 

“Finalidade: necessidade de impor um limite ao próprio legislador.

 

Grécia: distinguia-se, no direito ateniense, entre o nómos, isto é, a lei em sentido estrito, e o pséfisma, ou seja, para usar um termo moderno, o decreto” (obra citada, p. 49).

 

“Era princípio fundamental aquele segundo o qual o decreto, qualquer que fosse o seu conteúdo, devia ser ‘legal, seja na forma, seja na substância. Isto é, ele devia, como seríamos tentados a dizer, nós, juristas modernos, ser constitucional, ou seja, não podia estar em contraste com os nómoi vigentes — com as leis constitucionais vigentes” (obra citada, p. 50).

 

A conseqüência da ilegalidade (inconstitucionalidade):

 

a) responsabilidade penal para aquele que havia proposto decreto (obra citada, p. 50);

 

b) invalidade do decreto contrário à lei, por força do princípio que se encontra afirmado em um trecho de Demóstenes, segundo o qual o nómos, quando estava em contraste com pséfisma, prevalecia sobre este (obra citada, p. 51).

 

Meio de controle — a ação pública de ilegalidade (graphê paranómôn).

 

Prazo para a interposição da ação — um ano (obra citada, p. 50).

 

O teatrólogo Sófocles, que viveu entre 496 a 406 a.C., em sua peça Antígona, portanto, antes de Aristóteles, que viveu entre 384 a 322 a.C., já antecipara a supremacia de algumas leis sobre outras.

 

"Trata-se do verter dos valores e das significações, em particular, do duplo valor do gesto de Antígona. Este é, simultaneamente, subjetivo, pessoal, racional (amor de uma moça jovem pelo irmão e pela família) e altamente objetivo, político e jurídico (o esforço de uma princesa epicler [o epiclerato tem por função assegurar a paternidade da casa paterna. No matrimônio epicler, a esposa, enquanto filha da casa, é o lar paterno.] para salvar a pureza de sua linhagem extinta e do novo descendente desta linhagem que poderia nascer das suas entranhas.", diz Kathrin H. Rosenfield13.

 

A seguir, um estudo/resumo sobre a obra do mencionado teatrólogo14, especial atenção merece o diálogo travado entre Antígona e Creonte, quando esta é acusada de promover o enterro de seu irmão:

 

A cidade de Tebas, situada na região da Beócia, no sudoeste da Grécia, teve como seus ancestrais e seus reis: Cadmos, Polidoro, Agenor, Lábdaco, Laio e Édipo. Seu fundador foi Cadmos.

 

Lábdaco inicia a dinastia dos Labdácios.

 

Laio era filho de Lábdaco e, ainda muito jovem, foi impedido por Zeto e Anfião de assumir o trono de sua cidade, tendo que dela se refugiar, indo para a cidade de Elida, onde foi recebido na corte do rei Pélops.

 

Os gregos prezavam muitíssimo os laços de hospitalidade, tanto assim que um dos motivos da guerra de Tróia foi o fato de Páris, príncipe filho dos reis Príamo e Hécuba daquela cidade, e que fora hóspede de Menelau, rei de Esparta, ter-lhe levado a esposa ao fim da hospedagem, ofendendo, assim, gravemente, a hospitalidade que lhe fora dedicada.

 

Esquecendo dessa obrigação sagrada para com seu hospedeiro, Laio se apaixonou perdidamente por Crisipo, filho do rei Pélops e da ninfa Axíoque, raptando o rapaz, assim como Páris fizera com Helena (embora, mais tarde, Górgias, vá por em dúvida se Helena foi levada por castigo, por engano, por rapto ou por amor, defendendo, para qualquer que tenha sido a causa, a sua absolvição: se foi por castigo dos deuses não poderia ser condenada, pois quem contra tal força iria se opor? Se foi por engano, não poderia ser condenada, pois, quem condenaria a enganada? Se foi raptada, foi levada por violência, então, quem condenaria a vítima? Por fim, se foi por amor, quem condenaria uma pessoa que ama? Estas teses constam do discurso: A defesa de Helena, uma das obras primas do discurso sofístico).

 

Este rapto, somado ao desrespeito à hospitalidade, levaram o rei Pélops a amaldiçoar publicamente Laio, especialmente que ele morresse sem deixar descendentes. A essa maldição juntou-se a ira da deusa Hera, que era a deusa dos amores legítimos.

 

Este rapto veio a inaugurar, abertamente, o homossexualismo na Grécia. As conseqüências ...

 

Crisipo, a vítima de Laio, posteriormente, veio a se matar.

 

Consultando um oráculo, Laio ficou sabendo que seria morto por um filho seu, como castigo para o ato praticado contra Crisipo.

 

Laio casou-se, depois, com Jocasta, que tinha um irmão, Creonte, sendo ambos filhos de Meneceu.

 

Fruto do seu casamento com Laio, Jocasta deu a luz a um menino.

 

Ao ver o filho, Laio lembrou-se da premonição do oráculo e resolveu matar o próprio filho. Como não tinha coragem, amarrou a criança pelos pés, após ter furado seus tendões, e deu a um de seus pastores para que o abandonasse no monte Citéron, abandono que o levaria à morte certa.

 

O pastor, realmente, levou a criança rumo ao seu destino. Entretanto, chegando ao local onde abandonaria o menino, se condoeu com a sorte do mesmo, e, em vez do abandono, deu a criança a um outro pastor seu conhecido, que pastoreava os rebanhos do rei de Corinto.

 

O segundo pastor aceitou a criança por lembrar-se que o rei Pôlibo e sua esposa Mérope não tinham filhos e poderiam adotar o menino. Foi o que fizeram.

 

Deram-lhe o nome de Édipo, do grego oidípous, que significa pés inchados, exatamente como se encontravam os pés do pequeno em virtude das amarras que lhe pusera o pai, Laio.

 

Édipo cresceu feliz e com todas as facilidades que a sua condição de filho dos reis lhe podia proporcionar. Estudou e praticou esportes.

 

Já rapaz, Édipo participava de uma animada festa quando um dos convidados, já embriagado, disse a ele que não era filho legítimo dos reis Pôlibo e Mérope, mas que era filho adotivo.

 

Com a notícia, Édipo foi interrogar seus pais sobre o assunto, os quais se sentiram magoados com as perguntas do filho. Este continuou a remoer a sua dor e resolveu dirigir-se ao oráculo de Apolo, na cidade grega de Delfos, mas o oráculo não pôs fim às sua dúvidas, ao contrário, aumentou seu desespero ao dizer-lhe que, no futuro, ele se casaria com a própria mãe, com quem teria filhos, tudo isso após matar o próprio pai.

 

Com medo deste vaticínio, Édipo decidiu não mais voltar para Corinto, com medo de praticar os atos que o oráculo predissera.

 

Saiu caminhando sem destino, indo, nesse itinerário, aproximar-se da cidade de Tebas.

 

Quando se aproximava da cidade, na estrada apareceu um carro levando várias pessoas. Uma delas se aproximou de Édipo e o agrediu para que ele saísse da estrada, permitindo a passagem do carro. Nessa agressão foi ajudado pelo principal ocupante do carro.

 

Édipo revoltou-se com a agressão e matou a todos, exceto um dos ocupantes do carro que conseguiu fugir.

 

Nessa época, a cidade de Tebas vinha sendo atacada pela esfinge (monstro que tinha cabeça e busto de mulher, corpo de leoa, cauda em forma de serpente, asas de ave, garras de leoa e voz humana), a qual lançava enigmas aos tebanos; aqueles que não respondiam eram devorados por ela.

 

Ao encontrar-se com Édipo, a esfinge lançou-lhe o seguinte enigma: “qual é o animal que pela manhã anda com quatro pernas; ao meio-dia com duas e à tarde anda com três pernas?”

 

Édipo decifrou o enigma ao responder que tal animal era o homem, pois quando criança (manhã) anda engatinhando; na meia idade (meio-dia) anda com os dois pés, e na velhice (tarde) anda auxiliado por bengala.

 

Vencida, a esfinge se afogou no mar.

 

O rei de Tebas que tinha saído da cidade em busca de ajuda para derrotar a esfinge não voltara mais. Na sua ausência e morte presumida, assumiu o trono seu cunhado Creonte, que tinha prometido o próprio trono e a mão da rainha viúva Jocasta àquele que vencesse a esfinge. Tendo vencido, Édipo assumiu o trono e casou-se com a rainha.

 

Do casamento de Édipo com Jocasta nasceram os seguintes filhos: Antígona, Ismênia, Polinices e Eteócles.

 

Tebas, até certo momento, prosperou sob o governo de Édipo. Passados alguns anos, instalou-se sobre a cidade uma terrível peste que abateu-se incansavelmente seus habitantes.

 

Esta peste foi provocada pelos deuses, que estavam atentos aos cumprimentos de seus vaticínios anteriormente emitidos.

 

Não sabendo o que fazer para controlar o mal que dizimava a população, Édipo manda seu cunhado Creonte ir consultar o oráculo de Delfos sobre os motivos da peste.

 

Creonte volta com a resposta do deus Apolo, que manda libertar Tebas da execração, banindo o assassino do rei Laio.

 

Édipo começa a procura pelo assassino do rei. Em primeiro lugar conclama a população a denunciá-lo; depois que se apresente voluntariamente, pois, neste caso, será apenas exilado e não morto. Dentre os castigos que irá impor ao criminoso, estão os seguintes:

 

“...proíbo terminantemente aos habitantes deste país onde detenho o mando e o trono que acolham o assassino, sem levar em conta o seu prestígio, ou lhe dirijam a palavra ou lhe permitam irmanar-se às suas preces ou sacrifícios e homenagens aos bons deuses ou que partilhem com tal homem a água sacra! Que todos, ao contrário, o afastem de seus lares pois ele comunica mácula indelével”.

 

Como ninguém se apresenta, o rei manda chamar o profeta cego Tirésias, para consultá-lo sobre quem seria o criminoso.

 

Com relutância, o profeta diz a Édipo que ele é a própria pessoa a quem procura. Este passa, então, a ralhar com o profeta, imputando-lhe falso conhecimento, em especial por inveja de não ter sido o próprio a vencer a esfinge.

 

A revelação, no entanto, perturba profundamente o rei, que passa a desconfiar de um complô contra si, armado por seu cunhado Creonte, a quem Tirésias servia.

 

Eis que chega de Corinto um mensageiro noticiando a Édipo que seu pai Pôlibo tinha morrido e que sua mãe Mérope tinha se matado em seguida. Édipo se diz contente por deste modo ter fugido da profecia do oráculo. Eis que, ao ouvir tal regozijo, o mensageiro informa a Édipo que ele realmente não era filho dos reis de Corinto, e sim de um casal tebano, tendo, quando criança, sido entregue por um pastor do rei Laio, conhecido do mensageiro por pastorearem juntos no monte Citéron.

 

Édipo pergunta-lhe se era capaz de reconhecer o dito pastor, ao que ele responde que, mesmo com o passar dos anos, seria possível.

 

Édipo chama Jocasta e pergunta-lhe pelo pastor de Laio que lhe servia por aquela época. Jocasta diz que ele foi o único que sobreviveu ao ataque em que morreu Laio. Creonte ordena que mandem chamá-lo. Quando o pastor chegou, foi apresentado ao pastor mensageiro de Corinto, tendo ambos se reconhecido imediatamente.

 

O pastor do rei Laio, contudo, tentou, com evasivas, negar os fatos, mas, pressionado, confessou que a criança era filha de Laio e Jocasta, portanto, que era o próprio Édipo. Este, sabedor do defeito que tinha nos calcanhares, reconheceu a verdade que tanto queria evitar.

 

Nesse ínterim, Jocasta se retira para o interior do palácio, onde vem a se enforcar com uma corda em seu quarto.

 

Édipo vai ao encontro de sua mãe e esposa e já a encontra morta. Ao deparar-se com o cadáver, o rei retira os broches da roupa dela e com eles, no desespero, fura os próprios olhos, cujo sangue e lágrimas molham toda a barba. Quando, então, disse:

 

“para que serviriam meus olhos quando nada me resta de bom para ver? Teria algum prazer vendo o semblante dos pobres filhos meus, nascidos como foram?”

 

Édipo se impõe todo este sofrimento, mas evita se matar para não encontrar com os próprios pais no mundo dos mortos.

 

Após estes acontecimentos, como maldito e como ele próprio determinara, Édipo foi expulso de Tebas, assumindo o trono seu cunhado Creonte, tendo em vista a pouca idade dos filhos de Édipo.

 

Vagando pela Grécia, tempos depois, Édipo chega aos arredores de Atenas, mais precisamente em Colono, uma espécie de bairro daquela cidade.

 

Sem saber, invade neste local um parque destinado a deusas poderosas, as Fúrias (ou Erínies), no que fora repreendido por um morador local. A censura leva-o, guiado por sua filha Antígona, que era sua guia e que pedia alimento para ambos, abandonar o local. Pede, no entanto, ao seu interlocutor que faça chegar ao rei de Atenas o seu desejo de conversar com ele, pois tem a relatar-lhe uma clarividência. Quando o interlocutor parte, Antígona diz a seu pai:

 

“devemos adaptar-nos, pai, às tradições dos habitantes desta terra, obedecendo-lhes sempre que seja necessário e os ouvindo”,

 

o que já demonstrava o tirocínio da menina.

 

O rei de Atenas era Teseu, filho de Ageu.

 

Enquanto Édipo e Antígona estavam naquele local, chega ao encontro deles a filha e irmã Ismene, mais velha que Antígona e que muito havia perambulado até encontrá-los. Traz-lhes a notícia de que os filhos de Édipo, Eteócles (o mais novo) e Poliníces, tentaram fazer de Creonte rei de Tebas, para, com isso, afastar a maldição que se abatia sobre os Labdácidas. Essa solução foi passageira e durou até os príncipes ficarem adultos, quando acordaram entre si que dividiriam o poder, administrando Tebas alternadamente. Após o primeiro mandato de Poliníces, assumiu Eteócles, que ao término de seu mandato, não mais devolveu o poder ao irmão. Então, começaram a brigar pelo cetro e pelo poder real, sendo que Eteócles, sendo mais novo e por isso com menor direito, pela idade, ao poder, assumiu definitivamente o trono ao primogênito Poliníces e o expulsou da cidade.

 

Poliníces, cumprindo o ostracismo, um dos piores castigos para os gregos, pois significava a morte em vida, foi para a cidade de Argos, onde veio a se casar com a filha do rei Ádrasto, que o armou de poderoso exército a fim de recuperar seu trono em Tebas.

 

O rei Teseu chega para ouvir Édipo e pergunta-lhe que benefício o rei cego pretendia trazer-lhe. Édipo responde que com o tempo ele saberá, mas não naquele momento. “Quando, então?”, pergunta Teseu. “Quando eu morrer e me tiveres sepultado”, responde Édipo. Teseu, então, dá guarida a Édipo e suas filhas, acolhendo-o como habitante do lugar, incumbindo a súditos que deles cuidassem.

 

Tempo depois, Édipo e as filhas recebem a visita de Creonte, que diz que, em nome do povo, vinha levar Édipo de volta a Tebas. Como já tinha sido alertado por Ismene, Édipo recusa, pois o que Creonte lhe preparava era uma sepultura nos arredores de Tebas. Com a resposta negativa, Creonte revolta-se e tenta levar suas sobrinhas consigo. Édipo pede e o povo vem em seu socorro, inclusive o rei Teseu, que, ao chegar no local, encontra apenas Creonte, pois os guardas do rei tebano já haviam partido, levando as duas meninas. Teseu reclama sua devolução, mas há recusa por parte do outro rei. Teseu e seus guardas saem em perseguição aos raptores e conseguem devolver as meninas ao seu velho pai.

 

Édipo toma conhecimento, por Antígona, que Poliníces deseja com ele conversar, ao que o pai recusa terminantemente, pois se encontra naquela vida miserável pelo fato de ter sido expulso pelos seus filhos varões. Teseu intervém, pedindo ao ancião que receba seu filho, ao que ele não pôde deixar de aquiescer.

 

Poliníces veio pedir ao seu pai que o apoiasse em sua investida contra Tebas, pois o oráculo predissera que o filho que recebesse o apoio paterno sairia vitorioso do embate. Édipo recusa terminantemente a apoiar qualquer dos filhos e prediz que no combate os dois irmãos se matariam mutuamente.

 

Sem aprovação paterna, Poliníces caminha para o cerco a Tebas.

 

Édipo pede para que chamem novamente o rei Teseu e, quando este chega, noticia que é chegada a sua morte. Pede ao rei que cuide de suas filhas. Pede a todos que permaneçam onde estão e que somente o rei o acompanhe, pois só este saberia o local de sua sepultura, sendo este o benefício que lhe prometera quando de sua chegada. Os dois caminham até sumir das vistas das pessoas, voltando, posteriormente, apenas o rei Teseu, que guardou consigo para sempre o local da sepultura do rei maldito.

 

Começa a guerra entre os irmãos Eteócles e Poliníces pelo domínio de Tebas. Quem a vencerá, já que ambos aparentam ter igual legitimidade para sua causa?

 

Poliníces busca recuperar o trono do qual foi alijado injustamente por seu irmão.

 

Eteócles defende a existência da cidade de Tebas e de seu povo, cuja dizimação é buscada por seu irmão.

 

Assim, ambas as causas são perfeitamente defensáveis, mas de que lado estarão os deuses?

 

Etéocles afirma que eles estão sempre com os vencedores, com os vencidos estão os outros. Insiste que os divinos debandam da cidade vencida. E arremata que em qualquer empresa, a má companhia é o que há de pior.

 

O rei usurpador comanda e dirige o exército tebano, distribuindo os batalhões para os locais em que devem combater.

 

Como Tebas era cercada de muralha, existiam sete portas que lhe davam acesso. Para cada uma delas Poliníces encaminhou um batalhão com o respectivo comandante, na seguinte ordem:

 

porta Proítida: seria atacada sob o comando de Tideu;

 

porta de Electra: seria atacada sob o comando de Capaneu;

 

porta Neís: seria atacada sob o comando de Eteoclo;

 

porta Atena Onca: seria atacada sob o comando de Ipomedonte;

 

porta Bóreas: seria atacada sob o comando de Partenopeu;

 

porta Homolóis: seria atacada sob o comando de Anfiareu;

 

finalmente, a sétima porta seria atacada sob o comando do próprio Poliníces e, para combatê-lo, destacou-se a si próprio o rei Etéocles.

 

Na luta, os reis, nascidos no mesmo ventre, jazem, abatidos por golpes recíprocos, vítimas das próprias mãos, como de resto já antevira o próprio Édipo.

 

Com a morte dos irmãos, volta a assumir o trono seu tio Creonte, o qual, contra toda crença e prática ancestrais, baixa um decreto determinando que o corpo de Poliníces permanecesse insepulto, servindo de pasto para cães e aves de rapina, uma vez que ele morrera ao atacar a cidade de Tebas.

 

Quanto a Etéocles, receberia ele os funerais destinados aos heróis, pois morrera defendendo a cidade de Tebas.

 

O decreto de Creonte afrontava toda a tradição grega, que via e tinha no sepultamento um dos rituais mais sagrados e respeitados, tanto assim que a Guerra de Tróia chegou a ser interrompida para que se celebrassem os funerais de Heitor. Ou seja, o decreto ia de encontro a costumes imemoriais que, segundo acreditavam os próprios gregos, foram estabelecidos pelos próprios deuses.

 

A quem a população deveria obedecer, quanto ao sepultamento de Poliníces: ao decreto de Creonte ou às leis consideradas divinas? Havia comentários na cidade condenando o decreto real, mas, como a conseqüência para o seu descumprimento era a morte do infrator, ninguém ousava descumprir o édito real.

 

Antígona, no entanto, resolve contrariar o decreto de Creonte.

 

Decidida a enterrar seu irmão Poliníces, prestando-lhe as últimas homenagens, convida sua irmã, Ismênia, para ajudá-la na empreitada, sendo que esta pondera que tal atitude seria temerária, levando-as à morte. Mesmo diante da ponderação, Antígona vai em frente.

 

Aproximou-se do cadáver num momento de distração dos guardas, que o vigiavam para que fosse devorado. Lavou o seu corpo e fez preces.

 

Quando os guardas perceberam que o corpo fora sepultado, foram noticiar tal fato a Creonte, que sentenciou que, caso o autor do sepultamento não fosse encontrado, seriam mortos os próprios guardas que o permitiram, sob suborno.

 

Os guardas voltaram ao local e desenterraram o corpo novamente, expondo-o à ação determinada pelo decreto real. E se esconderam, para ver o que acontecia. Eis que novamente se aproxima do corpo e começa a enterrá-lo Antígona, momento em que é presa e levada à presença do seu tio-rei, que afirma já desconfiar que se tratasse da mesma. Entre tio e sobrinha, se estabelece o seguinte diálogo:

 

“Creonte: ... sabias que um edito proibia aquilo?

 

Antígona: Sabia. Como ignoraria? Era notório.

 

Creonte: E te atreveste a desobedecer às leis?

 

Antígona: Mas Zeus não foi o arauto delas para mim, nem essas leis são as ditadas entre os homens pela justiça, companheira de morada dos deuses infernais; e não me parece que tuas determinações tivessem força para impor aos mortais até a obrigação de transgredir normas divinas, não escritas, inevitáveis; não é de hoje, não é de ontem, é desde os tempos mais remotos que elas vigem, sem que ninguém possa dizer quando surgiram. E não seria por temer homem algum, nem o mais arrogante, que me arriscaria a ser punida pelos deuses por violá-las.

 

Eu já sabia que teria que morrer (e como não?) antes até de o proclamares, mas, se me leva à morte prematura, digo que para mim só há vantagem nisso. Assim, cercada de infortúnios como vivo, a morte não seria uma vantagem? Por isso, prever o destino que me espera é uma dor sem importância. Se tivesse de consentir em que ao cadáver de um dos filhos de minha mãe fosse negada a sepultura, então eu sofreria, mas não sofro agora. Se te pareço hoje insensata por agir dessa maneira, é como se eu fosse acusada de insensatez pelo maior dos insensatos.

 

Creonte: ... nem ela nem a irmã conseguirão livrar-se do mais atroz destino, pois acuso a outra de cúmplice na trama desse funeral.

 

Antígona: ... Eles me aprovariam, todos, se o temor não lhes tolhesse a língua, mas a tirania entre outros privilégios, dá o de fazer e o de dizer sem restrições o que se quer.”

 

Creonte busca condenar ambas as irmãs, mas Antígona chama para si toda a responsabilidade pelo ocorrido, dizendo à vacilante Ismene:

 

“Os mortos sabem quem agiu, e o deus dos mortos; não quero amiga que ama apenas em palavras.”

 

Hêmon, filho de Creonte e da rainha Eurídice, além de noivo de Antígona, roga pela vida da mesma, lembrando ao pai “o rumor obscuro ouvido pelas ruas” contra o seu decreto. Creonte é implacável e condena definitivamente Antígona à morte, mandando encerrá-la em uma caverna junto com alguns alimentos.

 

O sepultamento de Antígona na caverna é cumprido.

 

Creonte é procurado pelo adivinho Tirésias, que condena o seu ato, como já fazia toda a cidade, acusando-o de desrespeitar, ultrajando, os deuses. Então o rei resolve voltar atrás em sua decisão e manda seus servos partirem para o local onde Antígona fora encerrada para libertá-la, seguindo-os logo após. Quando as pedras, que fechavam a saída da caverna transformada em prisão, foram retiradas, Antígona estava pendurada, estrangulada em um laço improvisado com o seu próprio véu de linho, matando-se do mesmo modo que sua mãe Jocasta. Hêmon abraçou o corpo de sua noiva apertadamente. Quando Creonte chega ao local e vê a cena vivida por seu filho, com palavras carinhosas, pede que este saia do lugar. Hêmon, no entanto, investe contra o pai com a própria espada, mas não consegue atingi-lo. Revolta-se mais ainda e cospe na cara do pai, deitando-se, em seguida, sobre a lâmina de sua espada, que lhe traspassou o corpo, falecendo abraçado com sua noiva.

 

Creonte se maldiz:

 

“infeliz de mim por minhas decisões irrefletidas”,

 

no que foi advertido:

 

“como tardaste a distinguir o que era justo!”

 

A morte de seu filho Hêmon chega à Eurídice, que já havia perdido um outro filho, Megareu, durante a guerra de Tebas. Ao ouvir a notícia, a rainha vai para seus aposentos.

 

Quando Creonte, desesperado, chega ao palácio, é recebido com a notícia de que sua mulher havia se matado e, então, lhe é apresentado o corpo da rainha.

 

A Creonte não foi dado o benefício da desgraça rápida, pois:

 

“quanto mais breve for o mal, tanto melhor”.

 

Põe-se ele a lamentar a morte do filho e da mulher, dizendo que, com aquele, tudo perdeu, embora nova desgraça, ainda mais dura, esmague-lhe o destino.

 

De tudo resta que “a prudência é a primeira condição para a felicidade, que não se deve ofender os deuses em nada e que é na velhice que se aprende, afinal, a ser prudente”.

 

Na Europa, durante a Idade Média, tem-se:

 

“A idéia de jus naturale assumia um lugar preeminente: o direito natural era configurado como a norma superior, de derivação divina, na qual todas as outras normas deviam ser inspiradas (Cappelletti, p. 52).

 

“A concepção medieval foi, então, nas suas formulações mais difundidas, bem como na distinção entre as duas ordens de normas: a do jus naturale, norma superior e inderrogável, e a do jus positum, obrigada a não estar em contraste com a primeira” (Cappelletti, p. 52).

 

Na França: desde o século XVI, estava se desenvolvendo a teoria das leges imperii, as quais, se bem que distintas tanto das leis divinas como das leis naturais, como estas, não podiam ser alteradas nem pelo Rei nem pelos Etats généraux (Cappelletti, p. 55).

 

Na Idade Média, sempre citada como sinônimo idade do obscurantismo, ou das trevas, se produziu ampla doutrina que será fundamental no desenvolvimento do Constitucionalismo (sobre o qual trataremos em outro texto neste sítio).

 

Nicola Matteucci, no verbete CONSTITUCIONALISMO, no Dicionário de Política de Norberto Bobbio, lançado pela Editora da Universidade de Brasília (UnB), expôe:

 

“Mcllwain tinha certamente razão ao afirmar que o princípio da limitação do Governo mercê do direito era a característica mais antiga e autêntica do Constitucionalismo. Dessa tese ele parte para uma revalorização do pensamento político medieval, que a muitos poderá parecer desconcertante. Escreve: "Quem tentar relacionar o termo 'medieval' com algo de reacionário, como se habituaram a fazer hoje pessoas desmioladas, que medite bem antes. O absolutismo político é fruto dos tempos modernos; a Idade Média não queria saber disso". Na Idade Média, encontramos, de fato, não só as mais claras apologias do Governo limitado, como também, em consonância com elas, a mais explícita reivindicação do primado da função judiciária. A base sacral do poder do rei consiste unicamente no dever de administrar aos seus súditos "uma justiça reta e imparcial", porquanto "a tarefa de julgar pertence a Deus, não ao homem"; neste sentido, o rei, juiz supremo, era apenas um ministro e servo de Deus. Assim escrevia um bispo do século IX, Jonas de Orléans: "Por isso foi colocado no trono real para proferir juízos justos, para prover pessoalmente e cuidar com atenção que ninguém se afaste, ao julgar, da verdade e da eqüidade".

 

O rei era, pois, a fonte da justiça, o soberano juiz do seu povo, a pessoa em que os direitos dos súditos podiam encontrar sua tutela natural e a necessária garantia. Mas a consciência desta altíssima função, que faz do rei um vigário de Deus, está aliada ao conhecimento da profunda diferença que existe entre o rei e o tirano, entre o servo de Deus e o ministro do diabo. Basta pensar na ampla e duradoura aceitação de que gozou durante a Idade Média a célebre afirmação de Isidoro de Sevilha, um bispo que viveu entre os séculos VI e VII "Os reis são assim chamados por sua função de governar, como o sacerdote é assim chamado por sacrificar, é também o rei por reger. Mas não rege quem não corrige. Portanto, agindo retamente, conservará o nome de rei; pecando, o perderá. Daí este dito entre os antigos: 'Serás rei, se procederes com justiça, do contrário não o serás'". E o critério para julgar a retidão do comportamento do rei era seu respeito pela lei. João de Salisbury, por exemplo, escrevia, no século XII, ,em Policraticus: "Entre um tirano e um príncipe existe esta única, ou, melhor, esta capital diferença: o príncipe obedece às leis, governando segundo seus preceitos o povo de que se considera servidor. Na verdade, a autoridade do príncipe deriva da autoridade do direito: e, mais que o poder, importa submeter às leis o poder supremo. Por isso, que o príncipe não pense que lhe é lícito o que se aparta da eqüidade e da Justiça".

 

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Henry de Bracton, um juiz da corte do rei, que escreveu na primeira metade do século XIII um tratado monumental sob o título De legibus et consuetudinibus angliae, obra que se tomaria bem depressa texto, clássico e seria a base da formação dos legistas ingleses até os fins do século XVII. Pois bem,. Bracton afirma que "não há rei onde governa a vontade e não a lei” "que o rei não possui outro poder sobre a terra senão aquele que lhe confere o direito” "que o seu poder é o do direito, não o da injustiça". E é interessante cotejar este principio, que Bracton recalcou nos mais diversos pontos do seu tratado, com as afirmações dos glosadores bolonheses, bem conhecidas do Regista inglês. Bracton afirmou claramente que "o rei está subordinado à lei, porque é á lei que faz o rei".

 

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Idade média, John Fortescue. Provinha da mesma categoria de Bracton, da dos legistas, que tinham elaborado o sistema jurídico inglês do common law.

 

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Para Fortescue, por exemplo, é lei, antes de tudo, a lei natural "que é a mãe de todas as leis humanas"; são lei, em segundo lugar, os costumes antiquíssimos da Inglaterra, que são ótimos, porque mais antigos que as leis de Roma; e o são também, finalmente, as leis em sentido estrito, os estatutos aprovados "com o consenso de todo o Reino”, presente no Parlamento. Mas, se atentarmos bem, a verdadeira lei é a segunda, ou seja, o costume; que, na medida em que resistiu por longo do tempo, obtendo o consenso de contínuas gerações, demonstrou ser justa; a ela se hão de adequar, portanto, as diversas leis do Parlamento, meramente declarativas do direito. Em suma, o valor das leis consuetudinárias reside no fato de que, como escreveu Glanvill, Regista do século XII, elas são mores a populo conservai, costumes conservados pelo povo; ou, como repetiria mais tarde Bracton, são approbatae consensu utentium, são aprovadas pelo consenso dos que as usam.

 

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O tema do governo limitado, da supremacia do direito, é outra das idéias centrais da história do Constitucionalismo, mais antiga e mais moderna que o tema do Governo misto e da separação dos poderes: não se trata de dividir o poder, mas de o limitar, opondo ao demonismo da política, a nacionalidade do direito.”

 

 

Com os ingleses, temos:

 

a) A Magna Carta, de 121515


b) O Agreement of the people e o Instrument of Governement, este de 1653, e ambos tido como verdadeiras Constituições.

 

Mais tarde, “John Locke, embora afirmando que o Legislativo detém o supreme power, admitia, porém, que este Poder devesse encontrar limites no direito natural” (Cappelletti, p. 53).

 

“No século XVII, o juiz inglês Sir Eduard Coke16, no case Bonham’s, de 1610, ao se questionar sobre quem devia garantir, afinal de contas, a supremacia da Common Law contra os arbítrios do Soberano, de um lado, e do Parlamento, de outro, respondeu a essa indagação essencial: aquele controle, aquela garantia era a função dos juízes!” (Cappelletti, p. 58/59).

 

Lênio Luiz Streck, na sua obra Jurisdição Constitucional e Hermenêutica17, assim expõe a evolução do pensamento inglês:

 

“(...)Estados centralizados (Suécia e Inglaterra figuram entre os primeiros países que passaram pelo processo de unificação nacional, e, com isso, conseguiram emancipar-se do sistema medieval). Contra as pretensões absolutistas dos Stuarts, Sir Edward Coke invocava um Direito superior à prerrogativa régia e ao Direito estatutário: era o Direito proveniente da common law, de cuja interpretação os juízes eram donos e senhores.[Cfe. Tremps, Pablo. Tribunal Constitucional e Poder Judicial. Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1985, p. 18 e segs.]

 

Figura exponencial no nascimento do constitucionalismo inglês, Sir Edward Coke (1552-1634) foi presidente da common Pleas (Tribunal de Petições Comuns) desde 1603 até 1613 e presidente, até 1616, do Kings Bencli. Edward Coke era um grande teórico que se contra-punha a Jean Bodin e Thomas Hobbes, que, aliás, dedicou-lhe a obra A dialogue between a philosopher and a student of the common laws of England (1666, publicada em 1781). Como bem assinala Matteucci, em certos aspectos Coke pertence ao passado, uma vez que foi o grande inventor do mito da Magna Carta; em outros aspectos foi o precursor de uma solução alternativa para a construção jurídica do Estado, ao princípio da soberania que levará a uma cada vez mais estreita identificação do direito com a força, de ius com o iussum. É necessário identificar os momentos importantes de seu pensamento, a partir dos inúmeros Reports por ele redigidos, que não deixaram de fascinar até mesmo o seu adversário Francis Bacon. O pensamento de Coke encontrou logo uma expressão orgânica nos quatro volumes dos Institutos of the laws of England (1628, 1642, 1644, 1644), considerada uma das mais importantes obras de jurisprudência inglesa.[Cfe. Matteucci, op. Cit., p. 88 e 89.]

 

Com Carl Friedrich, vale registrar, ainda, que, em face da supremacia parlamentária que acabou por ser dominante na Inglaterra, os historiadores têm menosprezado as posições de Edward Coke. É certo que Cromwell estava profundamente convencido da necessidade de alguma norma fundamental que limitasse o poder do parlamento. Inclusive Bacon, adversário de Coke, que defendia a posição do monarca, admitia que o direito inglês estava baseado no direito natural. Porém, depois da evolução da responsabilidade do gabinete no século XVIII, essa noção veio a ser uma fórmula vazia, como já o era na época do absolutismo dos Tudor, primeira ocasião em que a supremacia do direito veio a significar a supremacia do parlamento. O fato de que os juristas ingleses não colocassem nunca nenhum obstáculo considerável no caminho desse desenvolvimento teve conseqüências muito importantes para a constituição inglesa e o direito inglês. O fato, porém, de o sistema haver funcionado bem durante um largo período não prova que seja fundamentalmente sólido. Tampouco é certo que seu êxito haja sido tão contínuo como às vezes se supõe. Sem embargo, havia na Inglaterra uma grande acumulação de direito criado pelos juízes, e foi contra esse poder dos juízes que Bentham centrou suas críticas em favor da legislação aprovada pelo parlamento.

 

Enquanto para Bacon — então Lord Chanceler — os juízes deviam ser leões abaixo do trono, e por isso não podiam obstaculizar nenhuma função do rei, para Coke os juízes eram leões que deviam custodiar, frente ao rei, os direitos dos cidadãos. Com efeito, para defender os direitos dos ingleses, sistematicamente, Coke negou o direito da "prerrogativa real", interpretando sempre de um modo restritivo os poderes da prerrogativa régia. Isso aparece em vários arrestos que trazem a marca de Coke, que vão desde os direitos de aduana, subsídios e impostos, até as sentenças proferidas contra as decisões da Alta Comissão, consideradas arbitrárias e sem fundamento. Além disso, insurgia-se contra o costume do rei de ouvir o voto dos juízes separadamente, extra iudicium, limitando, ainda, o poder do Tribunal da Chancelaria, que julgava com base na equity. [Cfe. Friedrich, op. Cit., p. 219.]

 

As teses e decisões de Coke não visavam apenas a uma batalha política; tratava-se, fundamentalmente, de uma proposta constitucional, profundamente inovadora, no momento em que a iurisdictio estava em plena crise e estourava o conflito entre a prerrogativa real e a iurisdictio. Três sentenças se tornaram famosas, que bem caracterizam o pensamento inovador e corajoso de Edward Coke: as sentenças sobre os writ of prohibition, as Proclamations (ordenanças administrativas) e a do processo Bonham. [Idem, ibidem.]

 

Segundo o pensamento medieval, somente ao rei, enquanto vigário de Deus na terra, podia dizer a justiça, sendo que, para facilitar-lhe o trabalho, era concedida ao rei a possibilidade de delegar essa função aos juízes. Pois bem. Na sentença sobre os writs of prohibition, datada de 13 de novembro de 1608, Coke teve um violento enfrentamento com o rei Jaime I. Explicando: o arcebispo de Canteburry, irritado pela invasão que os tribunais de Common Law faziam na jurisdição eclesiástica (Alta Comissão) através dos writs of prohibition, afirmou que o rei, enquanto juiz supremo, segundo a palavra de Deus, podia avocar dos juízes as causas que entendesse conveniente. Coke contrapôs a Common Law à Sagrada Escritura, sustentando que, pela Common Law, o rei não podia julgar nenhum, sendo que todos os casos deviam ser decididos pelos tribunais de justiça, em conformidade com a lei e os costumes da Inglaterra, existindo um Estatuto vigente desde Henrique IV, pelo qual se transferia o poder judicial do rei a diversos tribunais. O rei se ofendeu ao ouvir que estava submetido à lei, afirmando que era uma traição sustentar essa tese. Mais do que isso, disse o rei que é o rei que protege o direito, e não o direito que protege o rei, o rei faz os juízes e os bispos. Coke, entretanto, permaneceu irredutível e não abriu mão do poder judicial baseado na Common Law. Já no caso das Proclamations, que eram ordenações de caráter administrativo, de origem real, pelos quais o rei regulava determinadas questões, houve um novo conflito entre a prerrogativa real a jurisdição da Common Law. Observe-se que algumas ordenações chegaram a estabelecer que determinadas ações eram consideradas criminosas, sendo que os autores eram julgados pela Chambre of Stars, à revelia dos tribunais. Coke afirmou, então, que o rei não podia violar uma lei, mediante a expedição de ordenações, isto porque as ordenações não se encontravam entre as fontes do direito inglês. Mais ainda, sustentou que somente o Parlamento pode fazer leis (statutes). [Idem, ibidem.]

 

Mas é a sentença do caso Bonham que, certamente, é a mais famosa e a mais discutida, uma vez que a ela se pode creditar a moderna instituição do controle de constitucionalidade das leis por parte do Poder Judiciário. Afirmou Coke que a Common Law regula e controla os atos do Parlamento e às vezes os julga em todo nulos e sem eficácia, uma vez que, se um ato do parlamento é contrário ao direito e à razão comum, a Common Law o controla e o declarará nulo. Ou seja, ficou estabelecido que existe um direito superior à lei do parlamento: um estatuto legal tem uma validade formal quando deriva do Parlamento, uma validade substancial quando é racional; o controle do seu conteúdo corresponde aos juízes da Common Law.[ Na palavras de Coke, "and it appears in our books, that in many cases, the common law will controul acts of Parliament, and sometimes adjudge them to be utterly void: for when are act of parliament is against common right and reason, or repugnam, or imposible to be performed, the common law will controul it, and adjudge such act to be void ( ... ). Herle saith, some status are marfe against law and right, which those who marfe them perceiving, would not put them in execution."]

 

Desse modo, o projeto constitucional de Edward Coke, naquela época de crise, resulta suficientemente claro: de um lado estabelece a autonomia do Poder Judiciário frente ao Poder Executivo (prerrogativa real); de outro, no momento em que o parlamento se convertia em um órgão legislativo, transfere a função judicial, que era própria do Poder Legislativo enquanto "Alto Tribunal", aos tribunais de Common Law, considerados por Coke como os leões que deveriam manter sob a império da lei tanto o Rei como o Parlamento. Coke não podia intervir no problema da relação entre o Poder Executivo e o Parlamento porque, de direito, todos reconheciam a prerrogativa real no que pertine à política exterior e à manutenção da paz no reino; porém, de fato, poucos confiavam nos Stuart, e todos queriam controlar politicamente a prerrogativa real. Era um problema político, mas também um problema constitucional. Entretanto, os tempos não estavam maduros para afrontar o rei, porque, amiúde, os contendores tinham ambos razão, com base nos precedentes. Era necessária, então, uma solução política, e esta foi a guerra civil. [Cfe. Matteucci, op. cit.]

 

Em síntese, mais do que opor a common law ao poder régio, Coke defendia a prevalência da common law sobre o parlamento, ao referir que "aparece em nossos livros que em muitos casos a common law controla atos do parlamento e que às vezes os relega à absoluta nulidade; porque quando um ato do parlamento se opõe ao direito comum e à razão, ou repugna ou é de impossível aplicação, a common law controla esse ato e se impõe sobre ele, anulando-o". [Consultar Tremes, op. cit.; também Jennings, W. I. A Constituição Inglesa. Brasília, UNB, 1983.]

 

A doutrina de Coke predominou até a Revolução Gloriosa de 1688, tendo grande influência nos Estados Unidos, através do judicial review e a supremacia do Poder Judiciário. A partir de 1688, vinga na Inglaterra a supremacia do Parlamento. Na atualidade, é possível dizer que, stricto senso, comparando com os diversos sistemas de controle estabelecidos nos diversos países do mundo, não há controle de constitucionalidade na Inglaterra. Como já dito, na common law inglesa, toda regra legal está sujeita à mudança, seja pelos juizes, seja pelo Parlamento, mas, em ultima ratio, o que vai valer é a palavra do Parlamento. É assim que funciona o "controle de constitucionalidade" do direito inglês. Afinal, como se costuma dizer, o parlamento tudo pode, menos transformar homem em mulher.

 

A Constituição inglesa descansa, pois, a partir de 1688, sobre a soberania (ilimitada) do parlamento, ao ponto de, no século XIX, Blakstone [Cfe. Bandeira de Mello, Osvaldo Aranha. A teoria das constituições rígidas. São Paulo, José Bushatsky Editor, 1980, p. 52 e segs.] afirmar acerca do poder do parlamento inglês: "Sua autoridade soberana é sem freio; pode fazer, confirmar, estender, restringir, ab-rogar, revogar, renovar, e interpretar as leis, sobre as matérias de toda a denominação, eclesiástica ou temporais, civis, militares, marítimas ou criminais. É ao parlamento que a constituição desses reinos confiou este poder despótico e absoluto, que em todo o governo deve residir em alguma parte. Todos os males, as desgraças, os remédios a trazer, as determinações fora do curso ordinário das leis, tudo é atingido por este tribunal extraordinário. Pode regular ou mudar a sucessão ao trono, como fez sob os reinados de Henrique VIII e Guilherme III; pode alterar a religião nacional estabelecida, como fez em diversas circunstâncias sob o reinados de Henrique VIII e seus três filhos; pode mudar e criar de novo a constituição de um reino e do próprio parlamento, como fez pelo ato de União da Inglaterra e Escócia, e por diversos estatutos para as eleições trienais e setenais. Em que em uma palavra, pode fazer tudo o que não é naturalmente impossível. Por isso, não se teve escrúpulo em chamar o seu poder, por uma figura muito audaz: "O 'todo poderoso parlamento' ... Pois, sabe-se, Lord Burleigh disse que a ruína da Inglaterra não podia jamais ser operada senão pelo parlamento; e, como observa Sir Marthieu Hales, formando este corpo a corte mais elevada, sobre a qual nenhuma outra do reino podia ter jurisdição, se, por qualquer causa viesse a adotar maus princípios, o povo inglês estaria absolutamente sem recurso. E, assim Montesquieu previa, e eu creio ser previsão muito arriscada, que, do mesmo modo, como perderam Roma, Esparta e Cartago a sua liberdade e pereceram, a Constituição inglesa perecerá com o tempo; e isto, quando o poder legislativo se tornar mais corrompido que o poder executivo... Podemos, pois, afirmar que, enquanto durar a Constituição inglesa, o poder do parlamento será absoluto e sem freio".

 

Do ponto de vista formal, a história constitucional da Inglaterra data da Revolução Gloriosa de 1688. Essa constituição foi aprovada por um poder constituinte autêntico. Mas desde aquela época, relata Friedrich, a constituição inglesa havia sofrido uma série de mudanças profundas sem que haja mediado uma decisão explícita de nada. Os ingleses qualificam encantados com este processo de "resolver questões segundo se vão apresentando" (muddling through). Em realidade isto é parte de seu astuto realismo político. Estas convenções constitucionais - pois tal é o nome que recebem na Inglaterra - se desenvolvem a base de precedentes. Assim, por exemplo, a forma de dirigir o governo de Walpole criou uma série de precedentes que se converteram em base e reforma de governo parlamentar. As análises magistrais de autores como Bagehot e Jennings se produzem depois. A troca se produz sem que nada mais que os homens que estão no secreto compreendem o que está ocorrendo. O desenrolar constitucional inglês está em qualquer caso menos sujeito a formas, pelo motivo de que o poder de reforma corresponde à maioria parlamentar”.

 

Em 1602, foi fundada a Companhia das Índias Orientais.

 

A Companhia Holandesa das Índias Orientais ou “Companhia Neerlandesa das Índias Orientais” foi uma companhia majestática formada por holandeses, em 1602, com o nome formal de Companhia Unida das Índias Orientais, ou "Vereenigde Oost-Indische Compagnie", em neerlandês, com a sigla VOC - dois anos depois da formação da Companhia Inglesa das Índias Orientais – com o objetivo de tentar excluir os competidores europeus daquela importante rota comercial.

 

A sede era em Amsterdã, onde se cria em 1609 o Banco de Amsterdã para apoiar o comércio colonial, fonte de metais preciosos. É na dinâmica financeira desta companhia neerlandesa que surgirá o conceito atual de ações (aktien) por via da divisão, em 1610, do seu capital em quotas iguais e transferíveis. Tornar-se-á, contudo, devido aos bons resultados, cada vez mais um organismo estatizado, com autoridade militar e poder bélico para administrar ou impor os seus direitos e pretensões nos mares. Os impostos sobre as mercadorias e as rendas encherão os cofres do Estado neerlandês.

 

Em 1605 mercadores neerlandeses armados da VOC capturaram o forte português de Amboyna (ou Ambon), nas ilhas Molucas, em 1619, invadiram Jayakarta, que renomearam Batavia (o nome latino dos Países Baixos) e transformaram em sua capital e, em 1682, tomaram Bantam, que era o último porto importante ainda em mãos dos nativos. A partir dessa altura, a colônia das “Índias Orientais Neerlandesas”, atual Indonésia, passou a ser administrada pela VOC, até à sua liquidação em 1799. Concentrando o seu monopólio nas especiarias, os neerlandeses encorajaram a monocultura: Amboyna para o cravinho, Timor para o sândalo e as Bandas para a noz-moscada.

 

Em 1669, a VOC era a mais rica companhia privada do mundo, com mais de 150 navios mercantes, 40 vasos de guerra, 50 000 funcionários, um exército privado de 10 000 soldados e uma distribuição de dividendos de 40%. Depois da Quarta Guerra Anglo-neerlandesa (1780-1784), a VOC começou a ter problemas financeiros e foi liquidada em 1799”18.

 

Tem-se, acima, o contrato social da companhia, que, obviamente, não difere muito, ou em nada, de uma Constituição Política de um Estado atual, menos, ainda, da Americana.

 

Pode-se, assim, traçar o seguinte quadro comparativo:


 

 

Cia das Índias Orientais

Brasil (CF de 1988)

Nome

Companhia Holandesa das Índias Orientais

República Federativa do Brasil

Objetivo

tentar excluir os competidores europeus daquela importante rota comercial (para as Índias)

Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Sede

Amsterdã

Brasília

Banco

Banco de Amsterdã

Banco Central

Ações/Poder

Quem detinha suas ações

O povo brasileiro

Militar/Guerra

autoridade militar e poder bélico para administrar ou impor os seus direitos e pretensões nos mares

É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

....................................

autorizar o Presidente da República a declarar guerra, a celebrar a paz, a permitir que forças estrangeiras transitem pelo território nacional ou nele permaneçam temporariamente, ressalvados os casos previstos em lei complementar;

Impostos/Tributos

Os impostos sobre as mercadorias e as rendas encherão os cofres do Estado neerlandês

Compete à União instituir impostos sobre:


Monopólio

Concentrando o seu monopólio nas especiarias, os neerlandeses encorajaram a monocultura

Constituem monopólio da União:

a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;


Monopólio da força para impor suas decisões

impor os seus direitos e pretensões nos mares

Soberania e a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito

Bens

a VOC era a mais rica companhia privada do mundo, com mais de 150 navios mercantes, 40 vasos de guerra, 50.000 funcionários, um exército privado de 10.000 soldados e uma distribuição de dividendos de 40%.

São bens da União:

os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos; as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei;


 

 

Das Ordenações Filipinas19, cuja elaboração findou-se por volta de 1595 (Livro I, Tit. 58, nº. 17), já constava:

 

“E informar-se-há ex officio, se há nas comarcas algumas posturas prejudiciais ao povo e ao bem comum, posto que sejão feitas com a solenidade devida, e nos escreverá sobre ellas com seu parecer. E achando que algumas não foram feitas, guardada a forma de nossas Ordenações, as declarará nullas, e mandará que se não guardem”. E surge daí duas idéias marcantes: a) A exigência de uma hierarquia de leis, cedendo a inferior ao império da autoridade da superior; b) A competência atribuída a um órgão judiciário de decretar a nulidade de lei, incompatível com as Ordenações. – CFE. Buzaid, Alfredo. A ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito brasileiro. In: Revista Forense nº. 179. Rio de Janeiro, Forense, 1958, p. 15 e ss.”20

 

As próprias colônias inglesas na América tiveram legislação anuladas por ferirem as normas superiores da Coroa.

 

“As Colônias inglesas da América (plantations) foram, inicialmente, constituídas precisamente como companhias comerciais, e, de qualquer modo, a maior parte das Colônias foi regida por ‘Cartas o estatuto de la Corona’” (Cappelletti, p. 60).

 

“Estas ‘Cartas’ podem ser consideradas como as primeiras Constituições das Colônias, seja porque eram vinculadoras para a legislação colonial, seja porque regulavam as estruturas jurídicas fundamentais das próprias Colônias. Então, estas Constituições amiúde expressamente dispunham que as colônias podiam, certamente, aprovar suas próprias leis, mas sob a condição de que estas leis fossem ‘razoáveis’ e, como quer que seja, ‘não contrárias às leis do Reino da Inglaterra’, e, por conseguinte, evidentemente, não contrárias à vontade suprema do Parlamento inglês. E foi, então, justamente por força desta supremacia da lei inglesa que, é evidente, soava em uníssono com a doutrina da ‘supremacy of the English parliament’ — que em numerosos casos, alguns dos quais tornados famosos, o Privy Council do Rei decidiu que as leis coloniais deviam ser aplicadas pelos juízes das Colônias só se elas não estivessem em contraste com as leis do reino” (Cappelletti, p. 61).

 

Portanto, longe da originalidade que se lhes atribui, os americanos já dispunham de todo um conhecimento anterior capaz de lhes subsidiar a elaboração do seu famoso pacto fundador. Seus “pais fundadores” eram homens de larga cultura, com estudo e formação na Europa. Vejam o que escreveu Alexander Hamilton no artigo n. LXXVIII, d’O Federalista21:

 

“O campo de ação próprio e peculiar das cortes se resume na interpretação das leis. Uma constituição é, de fato, a lei básica e como tal deve ser considerada pelos juízes. Em conseqüência cabe-lhes interpretar seus dispositivos, assim como o significado de quaisquer resoluções do Legislativo. Se acontecer uma irreconciliável discrepância entre estas, a que tiver maior hierarquia e validade deverá, naturalmente, ser a preferida; em outras palavras, a Constituição deve prevalecer sobre a lei ordinária, a intenção do povo sobre a de seus agentes.

 

Todavia, esta conclusão não deve significar uma superioridade do Judiciário sobre o Legislativo. Somente supõe que o poder do povo é superior a ambos; e que, sempre que a vontade do Legislativo, traduzida em suas leis, se opuser à do povo, declarada na Constituição, os juízes devem obedecer a esta, não àquela, pautando suas decisões pela lei básica, não pelas leis ordinárias.

 

O exercício do critério judicial, no caso das leis contraditórias, é exemplificado a seguir. Não é raro acontecer que duas delas, aprovadas na mesma época, sejam parcial ou totalmente conflitantes, nenhuma delas contendo qualquer dispositivo revogável. Nesse caso, cabe às cortes decidir, fixando-lhes o sentido e a atuação. Sempre que, por um eqüitativo artifício, for possível reconciliá-las, a lógica e a lei recomendam que isso seja feito; quando tal solução for impraticável, será necessário pôr em execução uma delas, excluindo a outra. A regra observada nas cortes para determinar-lhes a validade relativa é que a última, na ordem cronológica, prefere as anteriores. Trata-se de uma simples norma de conduta não resultante de qualquer lei específica, mas tão-somente da lógica e da natureza das coisas, não sendo imposta às cortes por qualquer dispositivo legal, apenas adotado por elas, como mais condizente com a realidade e a justiça, para orientar-lhes a conduta como intérpretes da lei. Elas julgaram razoável que no caso de dois atos conflitantes e de igual hierarquia, deve ter preferência o que mais recentemente expressa a vontade do legislador.

 

Entretanto, se o conflito ocorreu entre atos de autoridades de hierarquia diferente, a lógica e a natureza das coisas indicam que deve ser observada regra diferente, devendo o ato anterior da autoridade mais hierarquizada ter preferência sobre o subseqüente de subordinada; em conseqüência, sempre que uma lei ordinária contrariar a Constituição, é dever dos tribunais obedecer o prescrito por esta e ignorar aquela”.

 

“Todos esses precedentes estão a demonstrar que a decisão do famoso caso Marbury versus Madison, de 1803, da lavra do juiz John Marshall, não é fruto de “um gesto de improvisação, mas, antes, [um] ato amadurecido através de séculos de história: história não apenas americana, mas universal” (Cappelletti, p. 63). Não se pode negar, no entanto, que “a opção do Chief Justice Marshall, com a proclamação da supremacia da Constituição sobre as outras leis e com o conseqüente poder dos juízes de não aplicar as leis inconstitucionais, certamente representou então, repito, uma grande importante inovação. E se é verdadeiro que hoje quase todas tais Constituições modernas do mundo ‘ocidental’ tendem, já, a afirmar o seu caráter de Constituições rígidas e não mais flexíveis, é também verdadeiro, no entanto, que este movimento, de importância fundamental e de alcance universal, foi efetivamente ini­ciado pela Constituição norte-americana de 1787 e pela corajosa jurisprudência que a aplicou” (Cappelletti, p. 48).

 

Eis que surge a primeira constituição escrita, que nada mais é, pensamos nós, que a síntese das experiências que lhes antecederam, assim é que a vemos como uma espécie de “contrato de constituição de um Estado”, nos mesmos moldes de um “contrato de constituição de uma empresa comercial”, como acima exposto, e que pode ser especificado desta forma (em comparação com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988):

 

a) quem são os donos/proprietários das empresas? Seus sócios. Já o Estado Brasileiro é constituído por “Nós, representantes do povo brasileiro” (Preâmbulo da CF/88)

 

b) qual será o nome da empresa? Aquele escolhido por seus fundadores. Já o nome do Estado Brasileiro é: República Federativa do Brasil (art. 1º da CF).

 

c) onde será o local da sede da empresa? Aquele escolhido por seus fundadores. Já a “sede” (capital) do Estado Brasileiro é: Brasília, a Capital Federal (art. 18, § 1º, da CF).

 

d) a empresa terá filiais? Depende da vontade dos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro, que poderia ser unitário, mas é federativo, tem é: o poder descentralizado, assim, dividido entre Estados e municípios, que funcionam como espécies de filiais [A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:] (art. 1º, da CF).

 

e) qual o objeto social da empresa? Depende da vontade dos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro tem por objetivo: “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” (art. 3º, da CF).

 

f) qual o capital social da empresa? Aqueles que seus fundadores aportarem/destinarem. Já o Estado Brasileiro tem por sues bens: “São bens da União: I - os que atualmente lhe pertencem e os que lhe vierem a ser atribuídos;II - as terras devolutas indispensáveis à defesa das fronteiras, das fortificações e construções militares, das vias federais de comunicação e à preservação ambiental, definidas em lei; III - os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais; IV as ilhas fluviais e lacustres nas zonas limítrofes com outros países; as praias marítimas; as ilhas oceânicas e as costeiras, excluídas, destas, as que contenham a sede de Municípios, exceto aquelas áreas afetadas ao serviço público e a unidade ambiental federal, e as referidas no art. 26, II; V - os recursos naturais da plataforma continental e da zona econômica exclusiva; VI - o mar territorial; VII - os terrenos de marinha e seus acrescidos; VIII - os potenciais de energia hidráulica; IX - os recursos minerais, inclusive os do subsolo; X - as cavidades naturais subterrâneas e os sítios arqueológicos e pré-históricos; XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.” (art. 20 da CF).

 

g) como se dá a transferência de poder/direção/comando na empresa? Pela transferência de cotas (ou ações). Já o poder, no Estado Brasileiro: “... emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (art. 1º, parágrafo único, da CF).

 

h) como se dá a responsabilidade dos sócios da empresa? Regra geral, está limitada ao montante do capital com o qual ele dela participa. Já a responsabilidade do Estado Brasileiro está direcionado e jungido pelo princípio da legalidade. Só pode o Estado fazer o que a lei permite/determina: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”, nem o Estado, (art. 1º, da CF). Ademais: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”(arts. 5º, II, e 37, § 6º, da CF).

 

i) qual o prazo de duração da empresa? Depende da vontade dos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro foi instituído por tempo indefinido, em 05.10.1988, data da entrada em vigor da CF.

 

j) como se dará administração e uso da empresa? Depende da vontade dos seus fundadores ao nomearem referidos administradores. Já o Estado Brasileiro será administrado: pelo Congresso Nacional, pelo presidente da República, pelos membros do Poder Judiciário, obedecidos os princípios estabelecidos pela Constituição (Arts. 37, 48, 84 e 92 e seguintes, todos da CF).

 

l) da remuneração pelo trabalho (pro-labore) dos administradores da empresa? Depende da vontade dos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro retribui seus administradores mediante remuneração fixada em lei, dentro de um teto máximo (arts. 37, XI, e §§ 4º e 8º , da CF).

 

m) como se dará o balanço e a prestação de contas da empresa? Depende da data e da forma prevista pelos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro prevê um controle interno e externo de suas contas: “O controle externo, a cargo do Congresso Nacional, será exercido com o auxílio do Tribunal de Contas da União...” (art. 71 da CF).

 

n) como se dará a sucessão no comando da empresa em caso de falecimento? Depende da forma como for disposto pelos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro prevê, claramente, essa e outras formas de impedimento: “Em caso de impedimento do Presidente e do Vice-Presidente, ou vacância dos respectivos cargos, serão sucessivamente chamados ao exercício da Presidência o Presidente da Câmara dos Deputados, o do Senado Federal e o do Supremo Tribunal Federal” (art. 80 da CF)..

 

o) como ocorrem as deliberações sociais no seio da empresa? Depende da forma como for estatuída por seus fundadores, observadas as disposições legais. O Estado Brasileiro regrou claramente como ocorreram suas deliberações, especialmente no exercícios de suas três funções primordiais: legislar, aplicar a lei e julgar. (arts. 57, 59/69 e 102, todos da CF).

 

p) quais os impedimentos e a legislação aplicáveis à empresa? Os impedimentos dependem do que for disposto por seus fundadores. Quanto à legislação, também pode depender do que for disposto por aqueles, exceto quando incidem leis de ordem pública (aquelas que não podem ser afastas pela vontade dos particulares). Já o Estado Brasileiro dispõe sobre impedimentos que podem afastar pessoas do exercícios de suas funções. Veja-se, a título de exemplo: “É vedada a cassação de direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I - cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; II - incapacidade civil absoluta; III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”, e “Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício d função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta” (arts. 12, § 3º e 15, inciso III. Art. 14, § 9º, e 15, todos da CF).

 

q) qual o foro onde serão dirimidas, judicialmente, as lides envolvendo a empresa? Depende, regra geral, daquele que for eleito pela vontade dos seus fundadores. Já o Estado Brasileiro também elegeu o seu foro: “Aos juízes federais compete processar e julgar: as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho; (art. 109, I, da CF).

 

Dentro dessa evolução histórica, em 1803, John Marshall, juiz da Suprema Corte Americana, lançou a famosa decisão de grande importância para o Direito Constitucional, em especial no que concerne ao controle jurisdicional da constitucionalidade das leis (onde aflora a supremacia constitucional e o controle efetuado pelo Poder Judiciário).

 

Conheçamos a decisão:

 

Marbury versus Madison

 

“John Marshall que, mediante unânime aprovação do Senado, fora nomeado Primeiro Juiz dos Estados Unidos pelo Presidente Adams, recebeu a comissão aos 31 de janeiro de 1801 e compareceu à seguinte sessão do Supremo Tribunal, onde tomou assento; mas nenhuma causa importante que envolvesse questão constitucional se ofereceu ao seu exame antes da sessão de fevereiro de 1803, quando se julgou a primeira causa dessa natureza, agitada entre partes —

 

I

 

William Marbury contra James Madison — Sessão de fevereiro de 1803 (I, repertório de Cranch, 137-180)

 

Quando a comissão já está assinada pelo Presidente, completa-se a nomeação do funcionário; e a comissão é feita e perfeita quando o Secretário de Estado lhe estampa o selo dos Estados Unidos. Reter a comissão assim feita e perfeita é violar legítimo direito adquirido.

 

O Supremo Tribunal dos Estados Unidos é incompetente para mandar passar alvará de mandamus, ordenando ao Secretário de Estado entregar um documento; a Constituição lhe não dá em tais casos jurisdição originária e é inconstitucional a resolução do Congresso que lha conferiu.

 

Nula é toda a lei oposta à Constituição.

 

Havia nestes autos os seguintes fatos: na sessão de fevereiro de 1803, William Marbury, por seu advogado, requereu ao Supremo Tribunal a notificação de James Madison, Secretário de Estado dos Estados Unidos, para embargar a expedição de um mandamus em que o Tribunal lhe ordenaria entregar ao dito Marbury a sua comissão de juiz de paz para o Distrito da Colúmbia*. Em confirmação desse requerimento mostravam-se certificados de que John Adams, último Presidente dos Estados Unidos, propusera Marbury ao Senado para ser nomeado juiz de paz deste Distrito; que o Senado aprovara tal nomeação; que em conseqüência disso a comissão fora lavrada, subscrita pelo presidente e selada com o selo dos Estados Unidos; mas que o Sr. Madison não quisera entregá-la, a despeito de já estar assim subscrita e selada*.

 

A notificação fora deferida e feita; Madison, porém, não ofereceu defesa alguma. Um mandamus fora então requerido. Acerca deste requerimento o Presidente enunciou o parecer do Tribunal aos 24 de fevereiro de 1803.

 

Na última sessão, lidos os certificados oferecidos nesta causa e autuados pelo secretário, deferiu-se ao suplicante uma notificação dirigida ao Secretário de Estado para embargar a expedição de um mandamus em que o Tribunal lhe ordene entregar a William Marbury a sua comissão de juiz de paz para o condado de Washington, no Distrito da Colúmbia.

 

Nenhuma defesa foi argüida e o presente requerimento é para a expedição de um mandamus. A peculiar delicadeza desta causa, a novidade de algumas de suas circunstâncias e a real dificuldade inerente às questões que nela ocorrem, exigem uma completa exposição dos motivos nos quais se estriba o julgamento que o Tribunal vai proferir.

 

Por parte do notificante tais princípios foram habilissimamente produzidos à barra do Tribunal. Na explanação do julgamento haverá tal ou qual divergência na forma, senão na substância, das questões postas naquela argumentação.

 

Na ordem em que o Tribunal examinou este assunto, foram estudadas e decididas as seguintes questões:

 

I. Há da parte do notificante direito à comissão que ele requer?

 

II. Se tem ele direito, e se esse direito foi violado, as leis de seu país lhe facultam recurso?

 

III. Se elas lhe facultam recurso, será o de mandamus emanado deste Tribunal?

 

O primeiro ponto a examinar-se é:

 

I. Há da parte do notificante direito à comissão que ele requer?

 

Esse direito se origina de uma deliberação do Congresso, referente ao Distrito da Colúmbia e aprovada em fevereiro de 1801.

 

Depois de dividir o Distrito em dois condados, dispõe a seção XI dessa lei: ‘O Presidente dos Estados Unidos nomeará, para exercerem durante cinco anos o ofício de juízes de paz em cada um dos ditos condados, tantos bons varões quantos, de quando em quando, lhe parecer conveniente’.

 

Mostram-se certificados de que, em conformidade desta lei, a comissão de William Marbury para juiz de paz do condado de Washington foi assinada por John Adams quando presidente dos Estados Unidos; mas a comissão jamais chegara às mãos da pessoa para quem se fizera.

 

A fim de determinar se Marbury tem direito a essa comissão, torna-se indispensável saber se de fato fora ele nomeado para o ofício, porquanto, no caso afirmativo, a lei nele o mantém durante o prazo de cinco anos e o habilita a se imitir na posse do respectivo diploma, o qual, por ser feito e perfeito, se tornou sua propriedade.

 

Declara a 2ª seção do art. 2º da Constituição que ‘o Presidente proporá, e com ciência e conhecimento do Senado, nomeará embaixadores, outros ministros públicos, cônsules e todos os demais funcionários dos Estados Unidos, cujas nomeações não forem de outra sorte determinadas’.

 

Da existência desta distinção segue-se ainda que, se uma nomeação precisasse ser provada por qualquer outro instrumento público que não a comissão, a feitura de tal instrumento constituiria o funcionário e desde que não seja ele amovível a arbítrio do presidente, ou dar-lhe-ia direito a sua comissão, ou habilitá-lo-ia a cumprir com os deveres de seu cargo.

 

Estas observações são propostas para o único fim de tornar mais claras as que mais diretamente se aplicam à espécie dos autos.

 

Há uma nomeação feita pelo presidente, com ciência e consentimento do Senado, e essa nomeação não se prova por outro instrumento que não seja a própria comissão. Neste caso, portanto, comissão e nomeação parecem indivisíveis; sendo quase impossível demonstrar a nomeação de outra forma senão com a prova da existência da comissão. Todavia, a comissão não constitui necessariamente a nomeação, ainda que importe em sua fé convincente.

 

Em que fase, porém, reveste-se ela de fé e certeza?

 

Parece óbvia a resposta desta questão. A nomeação, ato privativo do Executivo, ficará certificada quando se mostrar que o presidente já haja feito tudo quanto é mister para consumá-la.

 

Se se considerasse a comissão como constitutiva, em vez de simplesmente probatória, da nomeação, isso, contudo, só poderia suceder quando já estivesse praticado o último ato que o presidente devesse fazer, ou, em suma, quando a comissão já estivesse de todo feita e acabada.

 

O último ato que deve praticar o presidente é a assinatura da comissão. Até então ele procedeu com ciência e consentimento do Senado à operação de sua própria vontade acerca da nomeação. O tempo de deliberar está então findo. Ele resolveu. Essa resolução, tomada com ciência e consentimento do Senado, acorde com a sua proposta, tornou-se definitiva e o funcionário está nomeado. Esta nomeação fica evidenciada por um instrumento público e inequívoco; e, constituindo o último ato imposto à pessoa que a faz, exclui necessariamente a idéia de não passar de uma operação incipiente e incompleta, em tudo quanto entende com a nomeação.

 

Dispõe a 3ª seção que ‘ele comissionará a todos os funcionários dos Estados Unidos’.

 

Uma deliberação legislativa manda ao Secretário de Estado que guarde o selo dos Estados Unidos ‘para fazer ver e constar, e estampar o dito selo em todas as comissões civis dos funcionários dos Estados Unidos que forem nomeados pelo presidente, com ciência e consentimento do Senado, ou tão-somente pelo executivo, ficando entendido que o dito selo não será estampado em comissão alguma, antes de assinada pelo Presidente dos Estados Unidos’.

 

São estas cláusulas da Constituição e das leis dos Estados Unidos que interessam à primeira parte da causa. Parece preverem as três operações distintas:

 

1ª, a proposta. É ato privativo do presidente e se realiza segundo sua vontade;

 

2ª, a nomeação. É também ato voluntário do presidente, posto que só se aperfeiçoe pela ciência e consentimento do Senado;

 

3ª, a comissão. Dar comissão à pessoa nomeada talvez se possa considerar um dever imposto pela Constituição. ‘Ele comissionará, reza o instrumento, todos os funcionários dos Estados Unidos.’

 

Os atos de nomear e de comissionar alguém para um ofício, a custo serão tidos como uma só e mesma coisa; porque a Constituição outorga a atribuição para praticar um e outro em duas seções separadas e distintas. Melhor se enxerga a distinção existente entre nomeação e comissão em face do disposto no art. 2º, 2ª seção, da suprema lei, que autoriza o Congresso a atribuir a nomeação de funcionários inferiores, quaisquer que sejam, ao presidente, aos tribunais judiciários ou aos chefes de departamentos; prevendo assim hipóteses em que a lei pode ordenar ao presidente comissionar funcionários nomeados por tribunais ou pelos chefes de departamentos. Expedir nestes termos uma comissão será ostensivamente uma obrigação distinta da nomeação e talvez não se possa regularmente negar sua observância.

 

A cláusula da Constituição que manda ao presidente comissionar todos os funcionários dos Estados Unidos, apesar de ser sempre exercida só quanto a funcionários por ele nomeados, obsta, todavia, a que se conteste ao poder legislativo competência para estendê-la aos demais casos. Por conseqüência, a distinção constitucional entre a nomeação para um ofício e a comissão do funcionário que tiver sido nomeado, permanece tal qual se na prática o presidente comissionasse os funcionários nomeados por outrem.

 

Cumpre precisar o instante em que se extingue absolutamente a competência do executivo acerca do funcionário inamovível. Será esse instante quando a atribuição constitucional de nomear já tiver sido exercida. E essa atribuição já se terá exercido quando já estiver praticado o último ato exigido à pessoa competente. Este ato é a assinatura da comissão. Esta idéia parece ter prevalecido na legislatura quando aprovou a deliberação que erigiu em departamento a repartição dos negócios estrangeiros. Nessa deliberação se determina que o Secretário de Estado guardará o selo dos Estados Unidos ‘para fazer saber e constar, e estampar o dito selo em todas as comissões civis de funcionários dos Estados Unidos, nomeados pelo presidente; ficando entendido que o dito selo não será estampado em comissão alguma, antes de ser assinada pelo Presidente dos Estados Unidos; tampouco em nenhum outro ato ou instrumento, sem autorização do presidente, especial para o caso’. A assinatura é a ordem para estampar o grande selo na comissão, e o grande só é destinado a ser estampado em um instrumento que já estiver completo. Ele atesta, por um ato revestido de fé pública, a verdade da assinatura presidencial.

 

Nunca se estampa o selo antes da comissão ter sido subscrita, porque é a assinatura que dá força e efeito à comissão, é a prova concludente de que a nomeação se fez.

 

Lançada a assinatura na comissão, o subseqüente dever do Secretário de Estado se acha prescrito na lei e não se modela pela vontade do presidente.

 

É estampar o selo dos Estados Unidos na comissão e registrá-la.

 

Não é este um proceder que possa variar, se a opinião do executivo sugerir outro mais conveniente, mas uma regra precisa, expressa exatamente na lei, para o fim de ser observada. É dever do Secretário de Estado conformar-se com a lei; ele é nesse assunto um funcionário dos Estados Unidos, obrigado a obedecer às leis. Procede nessa conjuntura como se de fato estivera assente em um tribunal, sob a autoridade das leis, e não sob as instruções do presidente. É um ato ministerial que a lei impõe a esse funcionário especial para um fim especial.

 

No caso de supor-se que a solenidade da impressão do selo seja necessária tanto para a validade da comissão quanto para o remate ou a perfeição da nomeação, todavia é certo que, quando se estampa o selo, já está feita a nomeação e o título é válido. A lei não exige nenhuma outra solenidade, nenhum outro ato que, por parte do Governo, deva ser praticado. Já estão consumados todos os atos que o executivo deve fazer para investir de um ofício a alguém, e sob pena de não existir nomeação alguma, o executivo não pode praticar um só dos atos sem a cooperação dos outros.

 

Pesquisados acuradamente os princípios em que se pode basear uma opinião contrária, nenhum se encontrou que parecesse eficiente para apoiar a doutrina oposta.

 

Todos quantos a fantasia do Tribunal podia sugerir foram examinados com máxima cautela, e depois de se lhe dar toda a eficácia de que eram susceptíveis, não conseguiram abalar as opiniões que se formaram.

 

No estudo desta questão se conjecturou que a comissão para um ofício se assemelhasse a um instrumento de contrato, para cuja validade seja essencial a tradição.

 

Esta idéia nasce da conjectura de que a comissão para um ofício não é simplesmente a prova da nomeação, mas a própria nomeação; conjectura de modo algum incontestável. Todavia, para que se examine cabalmente essa conjectura, conceda-se que o pretenso princípio seja verdadeiro.

 

Devendo o presidente, nos termos da Constituição, praticar pessoalmente o ato da nomeação, a entrega da comissão, se é necessária para o seu inteiro implemento, deve também ser feita pelo presidente. Para o provimento de um ofício não é preciso, porém, que a entrega se faça à pessoa do concessionário desse ofício; nunca assim se praticou. A lei parece ordenar que a entrega se faça ao Secretário de Estado, pois que lhe manda estampar o selo na comissão depois que estiver subscrita pelo presidente. Logo, se o ato da entrega é necessário para dar validade à comissão, ela, de feito, fica entregue quando, depois de acabada, é dada ao secretário para o fim de ser selada, registrada e transmitida à pessoa nomeada.

 

Ainda em todos os casos de cartas patentes, exige a lei certas solenidades que constituem a prova da validade do instrumento. Porém não figura entre elas uma entrega formal à pessoa interessada. Nos casos de comissão, o sinal do punho do presidente e o selo dos Estados Unidos constituem tais solenidades. A objeção não interessa, pois, à causa.

 

Ocorreu, outrossim, como possível, e apenas possível, que a transmissão da comissão e a sua aceitação parecessem necessárias para completar o direito do notificante.

 

A transmissão da comissão é prática ordenada por mera conveniência, e não pela lei. Não pode, portanto, ser necessária para constituir a nomeação que deve precedê-la e que é simples ato do presidente. Se o executivo exigisse que todo o indivíduo nomeado para um ofício se esforçasse para procurar em pessoa a sua comissão, a nomeação por esse motivo não fora menos válida. A nomeação é ato privativo do presidente; a transmissão da comissão, ato privativo do funcionário a quem tal obrigação incumbe, e pode ser acelerada ou retardada por circunstâncias que de nenhum modo influem na nomeação. Uma comissão se transmite à pessoa já nomeada, e não à pessoa que ainda haja de ser ou de não ser nomeada, tal qual a participação oficial em que se inclui a comissão, que, sendo lançada dentro da caixa postal, tanto pode chegar às mãos do destinatário, como extraviar-se.

 

Concorre um tanto para elucidar este ponto examinar se a posse da comissão em original é indispensavelmente necessária para autorizar a pessoa nomeada a cumprir com os deveres de seu ofício. Se fosse necessária tal posse, então a perda da comissão importaria na perda do ofício.

 

Não somente por negligência, como por acidente, furto ou incêndio, alguém poderia ser privado de seu ofício.

 

Presumo que em tais casos não se questionaria se para todos os fins e efeitos equivaleria ao original um certificado do registro da comissão, tirado na Secretaria de Estado. A resolução legislativa assim dispõe, expressamente.

 

Para dar validade a tal certidão, não seria mister provar que tal original fora transmitido e que depois se perdera. A certidão seria prova provadíssima de que existiria o original e a nomeação se fizera, mas nunca de que o original tinha sido transmitido.

 

Se, de feito, se mostrasse que o original se houvera extraviado no departamento de Estado, esta circunstância não prejudicaria a tirada do certificado. Quando se acham satisfeitos todos os requisitos que autorizam o oficial de registro a registrar qualquer instrumento, e há ordem para isso, o instrumento é considerado, por lei, como registrado, posto que não esteja findo o trabalho manual de lançá-lo em um livro destinado para esse fim.

 

No caso de comissões, a lei manda ao Secretário de Estado registrá-las. Quando, pois, já estão seladas e assinadas, já está dada a ordem para seu registro e, quer já estejam ou não transcritas no livro, em face da lei já estão registradas.

 

A certidão do registro é declarada equivalente ao original e a lei fixa os emolumentos que deve pagar quem a requer. Poderá o oficial de um registro público dele cancelar uma comissão que tiver sido registrada? Ou poderá denegar certidão do registro a alguém que lha requeira nos termos prescritos pela lei?

 

Tal certidão, como se fora o original, autorizaria o juiz de paz a exercer os deveres de seu ofício, porque provaria a sua nomeação tanto quanto o próprio original.

 

Se não se considera a transmissão de uma comissão como necessária para imprimir validade à nomeação, menos o é a sua aceitação: a nomeação é ato privativo do presidente; a aceitação, privativo ato do funcionário, e por senso comum, posterior à nomeação. O funcionário tanto pode recusar a nomeação como aceitá-la; porém, nem uma nem outra coisa é capaz de torná-la inexistente.

 

Que é esta a inteligência dada pelo governo, transparece de todo o teor de seu procedimento.

 

Um título de comissão contém data e o ordenado do funcionário principia a correr do dia de sua nomeação, e não do dia da transmissão ou da aceitação da comissão. Quando a pessoa nomeada para um ofício se recusa aceitá-lo, nomeia-se o sucessor em substituição de quem não quis aceitar, e não em substituição de quem antes ocupava o ofício e abrira a primeira vaga.

 

O Tribunal, portanto, opina decididamente que a nomeação se diz feita quando a comissão está assinada pelo presidente e que a comissão se completa quando nela se estampa o selo dos Estados Unidos.

 

Quando um funcionário é amovível a arbítrio do executivo, não oferece sombra de interesse a circunstância complementar de sua nomeação; porque o ato é revogável a todo o tempo e a comissão pode ser retida, se ainda se encontra na Secretaria. Quando, porém, o funcionário é inamovível, a nomeação é irrevogável e não pode ser nulificada. Ela já conferiu legítimos direitos que já não podem mais ser eliminados.

 

A discrição do executivo deve ser exercida até que seja feita a nomeação. Tendo, porém, consumado uma vez a nomeação, sua competência em relação ao ofício se extingue em todos os casos em que por lei o funcionário não é amovível a seu bel-prazer. O direito ao ofício então existe na pessoa nomeada, e tem ela absoluta, incondicional faculdade de aceitá-lo ou de rejeitá-lo.

 

É, pois, certo que o Sr. Marbury foi nomeado, visto que a sua comissão fora assinada pelo Presidente e selada pelo Secretário de Estado, e como a lei da criação do ofício deu ao funcionário o direito de conservá-lo por cinco anos, independentemente do executivo, a nomeação, longe de ser revogável, empossara o funcionário em legítimos direitos que são protegidos pelas leis de seu país.

 

Reter o título de sua comissão é, pois, um ato julgado pelo Tribunal, não só não permitido pela lei, mas espoliativo de um legítimo direito adquirido.

 

Isto nos leva à segunda questão que é:

 

II. Se tem ele esse direito, e se esse direito foi violado, as leis de seu país lhe facultam um recurso?

 

A verdadeira essência da liberdade civil certamente consiste no direito que tem cada pessoa de invocar a proteção das leis, todas as vezes que for ofendida; um dos principais deveres do governo é conceder-lhe essa proteção. Na Grã-Bretanha o próprio rei é citado pessoalmente, na forma respeitosa de uma petição, e jamais deixou de conformar-se com as decisões judiciais.

 

No terceiro volume de seus Comentários, p. 23, expõe Blackstone dois casos em que se concede recurso por simples efeito da lei.

 

‘Em todos os demais casos, diz ele, existe a regra geral e incontestável, conforme a qual, quando há um legítimo direito, também há um recurso legal, por meio da demanda ou por meio da ação da lei, todas as vezes que o direito for violado.’

 

E depois, na p. 109 do mesmo volume: ‘Considerarei daqui a pouco as ofensas que são submetidas ao conhecimento dos tribunais de direito comum. E por enquanto só notarei que todas e quaisquer possíveis ofensas, quando não incidem na privativa competência dos tribunais eclesiásticos, militares ou marítimos, incluem-se, por essa mesma razão, na competência dos tribunais judiciários de direito comum, por ser princípio assente e invariável nas leis de Inglaterra que todo direito quando ofendido deve ter necessariamente um recurso, e toda ofensa o seu justo desagravo’.

 

Por ênfase, o governo dos Estados Unidos se chama governo de leis e não de homens. Certamente se tornaria ele indigno desta altíssima denominação, se as leis não ministrassem recursos contra a violação de legítimos direitos adquiridos.

 

Se a jurisprudência de nosso país corre o risco de manchar-se com tão feio labéu, tal azar procede indubitavelmente da natureza peculiar desta causa.

 

Importa-nos, pois, examinar se há no seu conjunto algum ingrediente que a exima da investigação legal, ou exclua o justo desagravo da parte ofendida. Ao encetar esta pesquisa, a primeira questão que por si mesma se apresenta é se o presente feito pode ser incluso entre as causas denominadas damnum absque injuria; isto é, lesão sem culpa.

 

Esta espécie de causas nunca se considerou, nem jamais se tentou considerar como compreensiva de ofícios de confiança, honra ou proveito. O ofício do juiz de paz no Distrito da Colúmbia é deveras um ofício; e merece, portanto, atenção e a tutela das leis. De fato recebeu essa atenção e tutela. Foi criado por especial deliberação do Congresso, e garantido por cinco anos, tanto quanto as leis podem garantir a pessoa nomeada para preenchê-lo. Não será, portanto, sob color22 da vilania da coisa em litígio que a parte lesada poderá ser argüida de falta de recurso.

 

Sê-lo-á pela natureza da transação? O ato de entregar ou de reter uma comissão deve ou pode ser considerado como mero ato político, pertencente só e só ao supremo poder executivo, a quem a nossa Constituição deu carta branca para levá-lo a cabo? E, de fato, não haverá nenhum recurso em favor das pessoas ofendidas quando ocorrer qualquer irregularidade quanto às suas comissões?

 

Não é contestável que possam ocorrer tais irregularidades, mas que baste para constituir alguma delas todo e qualquer ato obrigatório que deve ser praticado em alguns dos grandes departamentos de Estado.

 

Pela resolução referente aos inválidos, aprovada em junho de 1794 (vol. 3º, p. 112), ordenou-se ao Secretário da Guerra inscrever na lista de pensionistas todas as pessoas cujos nomes constassem de uma relação que ele previamente devia apresentar ao Congresso.

 

Se o Secretário se negasse a assim proceder, ficaria sem recurso o golpeado veterano? Quando a lei ordena, em termos precisos, a execução de um ato que interessa a alguém, deve-se ainda questionar se a lei é incapaz de assegurar obediência ao seu mando? Será esta dúvida possível, atento o caráter das pessoas contra quem se interpõe o recurso? Pode-se ainda negar que os chefes de departamento sejam responsáveis em face das leis de seu país?

 

Qualquer que tenha sido a prática em hipóteses especiais certamente a teoria de tal princípio nunca será mantida. Nem uma deliberação legislativa confere privilégios tão exorbitantes, nem tal princípio colhe sufrágio nas doutrinas de direito comum. Depois de estabelecer que se presumem impossíveis ofensas pessoais irrogadas pelo rei a seus súditos, diz Blackstone (vol. 3º, p. 255):

 

‘Porém ofensas aos direitos de propriedade dificilmente poderão ser cometidas pela coroa sem a intervenção de seus oficiais, para os quais não recomende a lei, em matéria de direito, deferência ou cortesia; ela, contudo, proporciona vários meios para a descoberta dos erros e mal proceder desses oficiais por quem tenha sido o rei enganado e induzido a cometer momentânea injustiça’.

 

Pela deliberação legislativa de 1796, que autorizou a venda de terras sitas acima da foz do Kentucky (vol. 3º, p. 299), o comprador, em pagando o preço do contrato, fica com pleno direito à propriedade comprada; e desde que exiba ao Secretário de Estado o recibo passado pelo tesoureiro, num certificado exigido por lei, o Presidente dos Estados Unidos está autorizado a dar-lhe o título. Depois se determinou que todos os títulos serão rubricados pelo Secretário de Estado e registrados em seu departamento. Se ao Secretário de Estado aprouver reter o título, ou em caso de perda, denegar a sua certidão, pode-se supor que a lei não ministre nenhum recurso ao ofendido?

 

Ninguém ousará sustentar proposição tão extravagante.

 

Segue-se, pois, que a questão, se a legalidade de um ato do chefe de um departamento está ou não sujeita ao exame de um tribunal judiciário, depende sempre e necessariamente da natureza desse ato.

 

Se alguns atos são sujeitos ao exame judiciário e outros não, deve haver uma regra legal que guie o Tribunal no exercício de sua jurisdição.

 

Em alguns pleitos surgirá dificuldade na aplicação da regra aos casos particulares; creio, porém, que no assentá-la nenhuma dificuldade ocorre.

 

Pela Constituição dos Estados Unidos o presidente é investido de certos e importantes poderes políticos em cujo exercício ele só recorre à sua discrição e só responde perante as leis de seu país, em seu caráter político, e perante a sua própria consciência. Para auxiliá-lo no desempenho desses deveres, ele é autorizado a nomear certos funcionários que obram sob a sua autoridade e em conformidade das suas ordens.

 

Em tais casos são dele os atos desses funcionários; e qualquer que seja a opinião que se possa formar quanto ao modo como se exerceu a discrição executiva, é certo que não existe, nem pode existir algum outro poder com capacidade para feitorizar essa discrição. Os assuntos são políticos. Dizem respeito à nação, não entendem com direitos individuais, e, sendo confiados ao executivo, a decisão do executivo é definitiva. A aplicação desta nota melhor se manifesta no exemplo da deliberação do Congresso que organizou o departamento de negócios estrangeiros. Seu chefe, conforme a norma traçada na lei, para o desempenho dos seus deveres, deve conformar-se exatamente com a vontade do presidente. Ele é um simples órgão por cujo meio se transmite aquela vontade. Os atos de tal funcionário, como funcionário, nunca poderão ser conhecidos pelo Tribunal.

 

Quando, porém, a legislatura prescreve outros deveres a esse funcionário; quando lhe manda peremptoriamente praticar certos atos; quando direitos individuais dependem do cumprimento desses atos, ele se torna, de fato e de direito, oficial da lei, é obrigado a dar à lei contas de seu procedimento, e não pode, a seu bel-prazer, ludibriar direitos adquiridos por terceiros.

 

A conclusão deste raciocínio é que, até onde os chefes de departamentos são agentes políticos e confidenciais do executivo, só destinados a executar a vontade do presidente ou antes a obrar nos casos em que o executivo possui um arbítrio legal ou constitucional, nada mais certo que seus atos só podem ser investigados politicamente. Quando, porém, um dever específico lhes é assinado por lei, e direitos individuais dependem do fiel cumprimento desse dever, parece igualmente certo que a pessoa que se julga ofendida tem o direito de recorrer às leis de seu país para a sua desafronta.

 

Se esta é a regra, seja-nos lícito ver como se aplica ao caso submetido à decisão do Tribunal.

 

O poder de propor ao Senado e o de nomear a pessoa proposta são poderes políticos que o presidente exerce segundo a sua discrição.

 

Quando ele já houver feito qualquer nomeação, é certo que já terá exercido aquele poder em toda a sua plenitude, e que de todo já terá aplicado ao caso a sua discrição. Se por lei o funcionário é amovível ad libitum do presidente, nesse caso outra nova nomeação poderá ser feita imediatamente, e os direitos do funcionário se perimem. Porém, como um fato que existiu não pode de forma alguma ser tido como se nunca tivesse existido, a nomeação não pode ser reduzida a nada; e, conseguintemente, se o funcionário não é, por lei, amovível à vontade do presidente, os direitos que ele adquiriu são amparados pela lei e permanecem fora da alçada da ação presidencial. Tais direitos não podem ser extintos pela vontade executiva; e assiste ao funcionário jus e ação para defendê-los do mesmo modo como se derivassem de outra fonte.

 

A questão, se há ou não há um direito adquirido, é, por sua essência, judiciária, e cumpre ser decidida por autoridade judiciária. Se, por exemplo, o Sr. Marbury houvesse prestado juramento do ofício de magistrado e como tal tivesse procedido a um ato, por cujo motivo se lhe houvesse intentado um processo de responsabilidade em que sua defesa dependesse da existência de sua magistratura, a validade de sua nomeação seria impreterivelmente determinada por autoridade judiciária.

 

Assim, se ele pretende que por virtude de sua nomeação lhe assiste legítimo direito à comissão, cuja prova exibiu, ou ao certificado dessa comissão, tal afirmativa constitui igualmente uma questão examinada no Tribunal, e a respectiva decisão depende da opinião formada pelos juízes acerca de sua nomeação.

 

Esta questão foi discutida e a opinião é que o último instante que pode ser tomado como aquele em que a nomeação já estava de todo feita e perfeita, ocorreu quando, depois da assinatura do presidente, o selo dos Estados Unidos foi impresso na comissão.

 

É, pois, o Tribunal de opinião:

 

1º, que o Presidente dos Estados Unidos, em assinando o título de comissão ao Sr. Marbury, o nomeou juiz de paz para o condado de Washington, no Distrito da Colúmbia; que o selo dos Estados Unidos, nele impresso, é prova concludente da verdade da assinatura, e da suma perfeição da nomeação; e que a nomeação lhe conferiu legítimo direito ao ofício pelo termo de cinco anos;

 

2º, que Marbury, possuindo esse legítimo jus ao ofício, tem correlato direito à comissão; e que a recusa da entrega da comissão constitui flagrante violação desse direito, para cujo desagravo as leis do seu país lhe facultam recurso.

 

Resta-nos examinar se:

 

III. Está o notificante habilitado a usar do recurso de que lançou mão. Isto depende de precisar-se:

 

1º, a natureza do alvará requerido; e

 

2º, a competência deste Tribunal.

 

Blackstone, no terceiro volume de seus Comentários, p. 110, assim define, em geral, o alvará de mandamus: ‘ordem emanada do tribunal do banco do rei, em nome do rei, e dirigida a qualquer pessoa, corporação, ou inferior tribunal judiciário, dentro dos domínios do rei, intimando-os a fazer alguma coisa particular, especificada no texto, e relativa a seus ofícios e deveres, que o tribunal do rei já houvesse julgado, ou ao menos presumido, ser conforme o direito e a justiça’.

 

Lord Mansfield, na causa do rei contra Baker e outros (3 Repertório de Barrow, 1266), determina com nímia clareza os casos em que cabe este alvará.

 

‘Todas as vezes, diz o emérito juiz, que houver direito a ocupar um ofício, a fazer um serviço ou a exercer uma isenção (mais especialmente se for objeto de interesse público ou fonte de proventos), e sempre que o titular for privado ou espoliado da posse desse direito, e se não deparar na lei nem um outro recurso específico, deverá este tribunal ampará-lo com um mandamus, mediante justas razões expressas no alvará, e por virtude de imperiosas exigências de alta política, para que se mantenham a paz, a ordem e um bom governo.’ Na mesma causa diz ele: ‘Este alvará tem cabimento todas as vezes que a lei não houver instituído algum recurso específico, e seja mister um recurso a bem da administração da justiça e do funcionamento de um bom governo’.

 

Em aditamento às autoridades ora especialmente citadas, foram lidas em sessão do Tribunal muitas outras que mostram quanto a prática se há conformado com as doutrinas gerais ora referidas.

 

O alvará pretendido, se for outorgado, será dirigido a um funcionário do governo e lhe ordenará, segundo os termos de Blackstone, fazer uma coisa particular especificada no texto e relativa a seu ofício e dever, que o Tribunal já houvera julgado, ou ao menos presumido, ser conforme o direito e a justiça. Além disto quem requer o alvará há de ter, consoante Lord Mansfield, direito a exercer um ofício público e se lhe há de negar a posse desse direito.

 

Estes requisitos concorrem evidentemente no caso em questão.

 

Para legitimar a expedição de um mandamus, cumpre ainda que o funcionário, a quem a ordem se dirige, pertença ao número daqueles a quem, conforme os princípios legais, semelhante alvará pôde ser dirigido; e à pessoa que o requer deve faltar qualquer outro recurso específico.

 

1º Quanto ao funcionário a quem a ordem deve ser dirigida.

 

As íntimas relações políticas subsistentes entre o Presidente dos Estados Unidos e os chefes de departamentos tornam tão peculiarmente árdua, quanto melindrosa, a investigação dos atos de um desses eminentes funcionários; e incutem tal ou qual hesitação acerca da conveniência de iniciar-se essa investigação. Muitas vezes recebem-se impressões sem bastante reflexão e acurado estudo, e não admira que em um caso como este a petição feita por um indivíduo em favor de sua justa reclamação a que o Tribunal é obrigado a atender, pareça, à primeira vista, não passar de uma tentativa tanto de intrusão no gabinete, quanto de usurpação das prerrogativas do executivo.

 

Há de o Tribunal rejeitar in limine todas as pretensões a tal jurisdição. Tamanha e tão absurda extravagância seria indigna de um só instante de atenção. O Tribunal só tem competência para decidir acerca de direitos individuais; jamais para examinar como o Executivo, ou os funcionários executivos, desempenham seus deveres em tudo a que se aplica a faculdade discricionária. Questões por sua natureza políticas, ou submetidas ao nuto do executivo pela Constituição e pelas leis, nunca poderão ser ventiladas neste Tribunal.

 

Se, porém, a presente causa não se inclui no quadro destas questões, se longe de envolver uma intrusão nos segredos de gabinete, diz respeito a um documento que na forma da lei está registrado, e para cuja certidão marca a lei o emolumento de um centésimo; se não constitui indébita ingerência em assunto em que se possa considerar o executivo no exercício de uma autoridade sem contraste; que haverá no elevado posto do funcionário que impeça o cidadão de defender os seus legítimos direitos em um Tribunal de Justiça, ou tolha o Tribunal de ouvir a reclamação, e de expedir um mandamus em que ordene o fiel cumprimento de um dever dependente, não da discrição executiva, mas tão-somente de especiais deliberações do Congresso e de princípios gerais de direito?

 

Se um dos chefes de departamento, sob color23 de seu ofício, cometer qualquer ato ilegal, de que resulte prejuízo para alguém, não se poderá pretender que o ofício, só de per si, o exima de ser demandado, nos termos ordinários do processo, e o desobrigue de obedecer ao julgamento. Como, então, poderá o seu ofício eximi-lo dos meios especiais por que se julga a legalidade de seu procedimento, se o mesmo fato autorizaria o processo desde que tivesse sido praticado por outrem?

 

 

Não é pelo ofício da pessoa a quem se dirige o alvará, mas pela natureza da coisa facienda, que se deve aferir a propriedade ou a impropriedade de um mandamus. Sempre que um chefe de departamento proceder em um caso em que couber o exercício da discrição executiva e em que ele seja mero órgão da vontade executiva, convém dizer de novo que toda a petição oferecida ao Tribunal para que de qualquer forma fiscalize e refreie aquele procedimento, seria repelida sem nenhuma perplexidade.

 

Quando, porém, manda-lhe a lei fazer certo ato que interessa a absolutos direitos individuais, em cujo desempenho ele não funciona sob a direção particular do presidente, e cujo fiel cumprimento o supremo executivo não pode legitimamente proibir, nem jamais se presume ter proibido; como, por exemplo, registar uma comissão para cargos públicos, ou uma escritura de terras, que já estejam revestidas de todas as solenidade legais, ou dar certidão desse registro; em tais casos não se imagina sob que pretexto os tribunais do país se considerariam positivamente escusos da obrigação de distribuir justiça à pessoa ofendida, como se aqueles deveres funcionais devessem ter sido desempenhados por outra pessoa que não o chefe do departamento.

 

Semelhante opinião não parece gozar entre nós de foros de oportunidade.

 

Convém lembrar que em 1792 se aprovou uma resolução legislativa, mandando diretamente ao Secretário da Guerra inscrever na lista de pensionistas todos os oficiais e soldados inválidos que lhe fossem indicados em relatórios dos Tribunais de Circuito; essa deliberação foi julgada inconstitucional na parte concernente aos tribunais: alguns juízes, porém, cuidando poder cumprir essa deliberação no caráter de comissários, procederam nesta qualidade aos termos da lei e do relatório.

 

Essa lei, por ter sido julgada inconstitucional nos circuitos, foi revogada e estabeleceu-se um sistema diverso; mas a questão, se as pessoas que já tinham sido indicadas pelos juízes, como comissários, estavam ou não habilitadas, graças ao relatório, a ser inscritas na lista de pensionistas, era uma questão legal, submetida curialmente à decisão dos tribunais, posto que incumbisse ao chefe de um dos departamentos inscrevê-las no rol dos pensionistas.

 

Para que essa questão se propusesse em juízo, o Congresso tomou uma resolução, em fevereiro de 1793, na qual obrigava o Secretário da Guerra a providenciar, conjuntamente com o Procurador-Geral, de modo a provocar uma decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos acerca da validade de tais direitos, reclamados à fé da sobredita lei.

 

Depois da passagem da nova deliberação, requereu-se expedição de um mandamus ao Secretário da Guerra, ordenando-lhe inscrever na lista de pensionistas uma pessoa que provara ter sido nomeada no relatório dos juízes.

 

Há, pois, razão de sobra para se crer que este modo de se fazer valer o legítimo direito do alistando, fora julgado pelo chefe do departamento e pelo mais alto funcionário do ministério público dos Estados Unidos, como o meio mais seleto e curial para alcançar-se o fim pretendido.

 

Quando a questão chegou ao seu conhecimento, o Tribunal não decidiu que o mandamus não obrigaria o chefe de um dos departamentos, ordenando-lhe fazer um ato prescrito em lei, e para cujo fiel cumprimento tinha um indivíduo direitos adquiridos; mas julgou apenas que naquela causa não se devia expedir o mandamus, atento o fundamento capital estatuído na sentença — de que o relatório dos comissários não conferira legítimos direitos ao alistando.

 

Entendeu-se que esse julgamento compreendia o merecimento de todas as causas da mesma espécie; e as pessoas indicadas nos relatórios dos comissários viram-se na necessidade de seguir o modo prescrito em lei subseqüente à que fora julgada inconstitucional, para o fim de ser inscrita na lista dos pensionistas.

 

Não traz, portanto, nenhum cunho de novidade a doutrina hoje exposta.

 

Em verdade, o mandamus ora requerido não tem por fim a feitura de um ato expressamente prescrito em qualquer estatuto.

 

A ordem será para entrega de uma comissão, e silenciam as leis acerca desse assunto. Esta lacuna não influi no caso vertente. Já está assente que o notificante tem à posse daquela comissão legítimo direito adquirido, de que o executivo não pode privá-lo. Realmente foi ele nomeado para um ofício de que não é amovível a arbítrio do executivo, e, estando assim nomeado, tem direito à comissão que para seu benefício o Secretário de Estado já houvera recebido do presidente. Em verdade a resolução legislativa não manda ao Secretário de Estado enviar-lhe a comissão; mas o diploma foi depositado em sua mão para ser transmitido à pessoa nomeada, e legalmente o secretário não pode retê-lo mais tempo do que qualquer outra pessoa.

 

Duvidou-se a princípio se a ação de depósito não era um legítimo recurso específico para a restituição da comissão sonegada ao Sr. Marbury, caso em que não caberia o mandamus. Essa dúvida cessou, porém, ante a consideração de que a ação de depósito tem por fim a entrega da própria coisa ou de seu equivalente. Ora, em ofício público que está fora do comércio, é inestimável e o notificante tem direito ou ao próprio ofício, ou a nada. Ele obterá o ofício, em obtendo a comissão ou a respectiva certidão tirada do registro.

 

Dá-se, em suma, um caso evidente de mandamus para a entrega da comissão ou da certidão de seu registro e só nos falta examinar se o tribunal tem competência para expedi-lo.

 

A lei orgânica dos tribunais judiciários dos Estados Unidos autoriza o Supremo Tribunal ‘a expedir alvarás de mandamus nos casos justificados pelos princípios e estilos legais, a quaisquer tribunais instituídos, ou pessoas que exerçam funções, sob a autoridade dos Estados Unidos’.

 

O Secretário de Estado, sendo pessoa que exerce funções sob a autoridade dos Estados Unidos, está precisamente dentro da letra da lei; e, se porventura carecer este Tribunal de competência para expedir alvará de mandamus àquele funcionário, isso provirá somente da circunstância de ser a lei inconstitucional e, portanto, incapaz absolutamente de conferir a atribuição e de assinar os deveres que seus termos se propõem assinar e conferir.

 

A Constituição delega todo o Poder Judiciário dos Estados Unidos a um Supremo Tribunal e tantos tribunais inferiores quantos o Congresso, de quando em quando, decretar e estabelecer. Esse poder se estende expressamente a todas as causas oriundas das leis dos Estados Unidos; e, pois, a sua intervenção não é certamente invocada debalde na hipótese dos autos, porque o direito pretendido é outorgado por uma lei dos Estados Unidos.

 

Declara-se na distribuição do Poder Judiciário que ‘o Supremo Tribunal terá jurisdição originária em todas as causas concernentes a embaixadores, outros ministros públicos e cônsules, e nos litígios em que for parte um Estado. Em todas as outras causas o Supremo Tribunal terá jurisdição em grau de recurso’.

 

Insistiu-se à barra do Tribunal que, como seja geral a delegação de jurisdição feita primordialmente no texto ao Supremo Tribunal e aos tribunais inferiores, e como não contenha nem uns termos negativos ou restritivos a cláusula que assina jurisdição originária ou de primeira e única instância ao Supremo Tribunal, fique reservada à legislatura competência para assinar a este Tribunal jurisdição originária em outras causas além das especificadas no artigo transcrito, contanto que essas causas pertençam ao Poder Judiciário dos Estados Unidos.

 

Se houvesse intento de deixar à competência da legislatura distribuir o Poder Judiciário a seu bel-prazer, entre o Supremo e os tribunais inferiores, certamente fora ocioso ir além da definição do Poder Judiciário e dos tribunais a que ele foi delegado. A parte subseqüente da seção não passaria de vã superfluidade, e não teria absolutamente significação alguma, se tal interpretação fosse verdadeira.

 

Se o Congresso ficasse com liberdade de dar a este Tribunal jurisdição de segunda instância onde a Constituição dispõe que sua jurisdição será originária, e jurisdição originária onde a Constituição dispõe que será de segunda instância, a distinção de jurisdição feita na Constituição é forma vazia de substância.

 

Termos afirmativos são muitas vezes, por sua eficácia, negativos de outras coisas que eles não exprimem, e neste caso se lhes deve dar um sentido negativo ou exclusivo, sob pena de não terem significação alguma.

 

Não se presume que uma cláusula inserta na Constituição seja destinada a não produzir nenhum efeito, e, pois, tal interpretação é inadmissível, salvo quando for imposta literalmente.

 

Se a solicitude da Convenção no tocante à custódia de nossa paz externa induziu uma disposição em que conferiu ao Supremo Tribunal jurisdição de primeira instância nos litígios que se supõe interessar às nações estrangeiras, certo, a cláusula se limitaria a dispor acerca dessas causas, se também não tivesse por fim restringir os poderes do Congresso.

 

Que em todas as outras causas os juízes do Supremo Tribunal exercerão jurisdição em grau de recurso, não é restrição, senão tomando-se os termos como exclusivos de jurisdição originária.

 

Quando um instrumento, organizando fundamentalmente um sistema judiciário, biparte-o em um supremo tribunal e em outros tribunais inferiores que a legislatura decretar e estabelecer, logo em seguida enumera as suas atribuições e dispõe quanto é mister não só para reparti-las, como para definir a jurisdição do supremo tribunal, declarando as causas em que ele exercerá jurisdição originária e mandando que nas outras exercerá jurisdição em segunda instância; o sentido claro das palavras parece ser que em uma classe de causas sua jurisdição é originária e não um grau de recurso; nas outras, em grau de recurso e não originária. Se qualquer outra interpretação torna a cláusula ineficaz, isso constitui um motivo adicional não só para rejeitarmo-la, como para nos apegarmos ao significado óbvio dos vocábulos.

 

Para habilitar este Tribunal a expedir o mandamus, cumpre, portanto, mostrar-se que ocorre um caso de exercício de jurisdição em grau de recurso, ou que os juízes do Tribunal se acham habilitados a exercer a dita jurisdição.

 

Assentou-se no Tribunal que por várias formas pode ser exercida jurisdição em grau de recurso e que, se for da vontade da legislatura que se use de mandamus para esse fim, deve-se-lhe obedecer. Esta é a verdade, contanto que a jurisdição outorgada seja de segunda e não de primeira instância.

 

É critério essencial da jurisdição de segunda instância que reveja e corrija os termos de uma causa já proposta e não dê início a essa causa. Portanto, ainda que se possa expedir um mandamus aos Tribunais, todavia, o expedir-se tal alvará a um funcionário para a entrega de certo e determinado documento, é, de fato, o mesmo que se iniciar uma ação originária acerca desse documento. Nem isto basta em uma ação como a de que se trata, para habilitar o Tribunal a exercer jurisdição em grau de recurso.

 

A atribuição, portanto, dada ao Supremo Tribunal pela lei que estabelece os tribunais judiciários dos Estados Unidos, para expedir alvarás de mandamus a funcionários públicos não se mostra assente na Constituição e obriga a examinar se pode ser exercida uma jurisdição assim conferida.

 

A questão, se uma resolução da legislatura incompatível com a Constituição, pode tornar-se lei do país, é uma questão profundamente interessante para os Estados Unidos, mas, felizmente, de nenhuma dificuldade proporcional à sua magnitude. Para resolvê-la, basta o reconhecimento de certos princípios que foram longa e otimamente estabelecidos.

 

Que o povo tem direito originário de estabelecer para o seu futuro governo os princípios que se lhe antolharem mais concernentes a sua própria felicidade, são os alicerces sobre que se assenta todo o edifício americano.

 

O exercício desse direito originário representa uma grande soma de esforços; não pode, não deve ser freqüentemente repetido. Os princípios assim estabelecidos são, pois, reputados fundamentais. E como é suprema a autoridade da qual eles dimanam, e raras vezes obra, são destinados a ser permanentes.

 

A vontade originária e suprema organiza o governo e assina aos diversos departamentos seus respectivos poderes. E pode contentar-se com isso ou fixar certos limites para que não sejam ultrapassados por esses departamentos.

 

Pertence à última classe o governo dos Estados Unidos. Os poderes da legislatura são definidos e limitados; e para que esses limites não possam se tornar confusos ou apagados, a Constituição é escrita. Para que fim os poderes são limitados, e com que intuito se confia à escrita essa delimitação, se a todo tempo esses limites podem ser ultrapassados por aqueles que se quis refrear? A distinção entre um governo de limitados ou de ilimitados poderes se extingue desde que tais limites não confinem as pessoas contra quem são postos e desde que atos proibidos e atos permitidos sejam de igual obrigatoriedade. É uma proposição por demais clara para ser contestada a de que a Constituição veta qualquer deliberação legislativa incompatível com ela; ou que a legislatura possa alterar a Constituição por meios ordinários.

 

Não há meio-termo entre estas alternativas. A Constituição ou é uma lei superior e predominante, e lei imutável pelas formas ordinárias; ou está no mesmo nível conjuntamente com as resoluções ordinárias da legislatura e, como as outras resoluções, é mutável quando a legislatura houver por bem modificá-la.

 

Se é verdadeira a primeira parte do dilema, então não é lei a resolução legislativa incompatível com a Constituição; se a segunda parte é verdadeira, então as constituições escritas são absurdas tentativas da parte do povo para delimitar um poder por sua natureza ilimitável.

 

Certamente, todos quantos fabricaram constituições escritas consideraram tais instrumentos como a lei fundamental e predominante da nação e, conseguintemente, a teoria de todo o governo, organizado por uma constituição escrita, deve ser que é nula toda a resolução legislativa com ela incompatível.

 

Essa teoria adere essencialmente às constituições literais e deve conseqüentemente ser tida e havida por este Tribunal como um dos principais fundamentos de nossa sociedade. Não se deve, portanto, perdê-la de vista no ulterior exame desta causa.

 

Se nula é a resolução da legislatura inconciliável com a Constituição, deverá, a despeito de sua nulidade, vincular os tribunais e obrigá-los a dar-lhe efeitos? Ou, por outros termos, posto que lei não seja, deverá constituir uma regra tão efetiva como se fosse lei? Fora subverter de fato o que ficou estabelecido em teoria e pareceria, à primeira vista, absurdo bastantemente crasso para que seja defendido. Contudo, terá mais acurado exame.

 

Enfaticamente, é a província e o dever do Poder Judiciário dizer o que é lei. Aqueles que aplicam a regra aos casos particulares devem necessariamente expor e interpretar essa regra. Se duas leis colidem uma com outra, os tribunais devem julgar acerca da eficácia de cada uma delas.

 

Assim, se uma lei está em oposição com a Constituição; se, aplicadas elas ambas a um caso particular, o Tribunal se veja na contingência de decidir a questão em conformidade da lei, desrespeitando a Constituição, ou consoante a Constituição, desrespeitando a lei, o Tribunal deverá determinar qual destas regras em conflito regerá o caso. Esta é a verdadeira essência do Poder Judiciário.

 

Se, pois, os Tribunais têm por missão atender à Constituição e observá-la e se a Constituição é superior a qualquer resolução ordinária da legislatura, a Constituição, e nunca essa resolução ordinária, governará o caso a que ambas se aplicam.

 

Aqueles, pois, que contestam o princípio de que a Constituição deve ser tida e havida no Tribunal como lei predominante ficam reduzidos à necessidade de sustentar que os juízes e os tribunais devem fechar os olhos para a Constituição e só fitá-los na lei.

 

Esta doutrina subverteria o próprio fundamento das Constituições escritas. Seria declarar que uma resolução, que é nula em face dos princípios e da teoria do nosso governo, todavia, na prática se torna inteiramente obrigatória. Seria declarar que, se a legislatura fizer o que é expressamente proibido, esse ato, não obstante a proibição expressa, é de fato eficaz. Seria, deveras, dar à legislatura uma onipotência prática e real, de um só e mesmo jato em que se diz restringir seus poderes dentro de estreitos limites. Importaria tanto como prescreverem-se limites e declarar-se ao mesmo tempo que tais limites podem ser ultrapassados ad libitum.

 

A só advertência de que semelhante interpretação reduz a zero o que todos nós temos julgado ser o maior aperfeiçoamento dado às instituições políticas, uma Constituição escrita, bastaria de per si para rejeição de tal erro na América, onde as Constituições escritas são vistas com nímio acatamento. As expressões peculiares da Constituição dos Estados Unidos ministram, porém, argumentos adicionais em favor dessa rejeição.

 

O Poder Judiciário dos Estados Unidos estende-se a todas as causas oriundas da Constituição.

 

Poderia ter sido a intenção daqueles que outorgaram tal poder dizer que no seu exercício a Constituição não seria atentamente estudada? Que uma causa oriunda da Constituição seria julgada sem o exame do instrumento do qual essa causa procede?

 

Extravagância por demais excessiva para que se sustente.

 

Então, em tais causas, a Constituição será lida e relida pelos juízes. E, se eles podem folheá-la de todo, a que parte dela lhes é vedado prestar leitura e obediência?

 

Há muitas outras disposições da Constituição que servem para esclarecer o assunto.

 

Declara-se que ‘nenhum imposto ou direito será lançado em mercadorias exportadas de qualquer Estado’. Suponha-se um imposto pago pela exportação de algodão, tabaco ou farinha, e uma demanda proposta para a sua restituição. Deve em tal caso proferir julgamento? Devem os juízes ter os olhos cerrados para a Constituição, e só fitos na lei?

 

Declara a Constituição que nenhum bill of attainder ou nenhuma lei ex post facto serão decretados*.

 

Se, contudo, passar tal bill e se por efeito dele alguém for processado, o Tribunal deverá condenar à morte as vítimas cuja vida a Constituição se empenha em preservar?

 

‘Ninguém, diz a Constituição, será condenado por traição, senão mediante o conteste depoimento de duas testemunhas de algum ato patente, ou mediante confissão feita em sessão pública de um tribunal.’

 

Aqui a linguagem da Constituição se dirige especialmente aos tribunais. Ela lhes prescreve diretamente uma inflexível regra de prova, que nunca deverá ser postergada. Se a legislatura mudasse essa regra e declarasse o depoimento de uma só testemunha, ou a confissão extrajudicial, suficiente para a sentença condenatória, deveria o princípio constitucional ceder a primazia à resolução legislativa?

 

Destas, e muitas outras seleções que se poderiam fazer, mostra-se que os autores da Constituição consideraram aquele instrumento como regra de governo, tanto para os tribunais como para a legislatura.

 

Por que manda ela, em suma, que prestem os juízes o juramento de mantê-la? Esse juramento certamente se adapta de modo especial ao seu procedimento no seu caráter oficial. Quão imoral impor-se-lhes esse compromisso, se eles tivessem por missão proceder e julgar como instrumentos, e conscientes instrumentos, da violação daquilo que juraram manter!

 

O juramento de ofício, assim imposto pela legislatura, é prova provadíssima da opinião da legislatura, quanto ao assunto. São estas as palavras: ‘Juro solenemente que distribuirei justiça sem contemplação das partes e reconhecerei igual direito tanto ao pobre como ao rico; e que cumprirei fiel e imparcialmente todos os deveres que me incumbem, como [...] tanto quanto o permitir o melhor de minhas forças e inteligência, de acordo com a Constituição e as leis dos Estados Unidos’.

 

Por que promete o juiz cumprir com os seus deveres de acordo com a Constituição e as leis dos Estados Unidos, se essa Constituição não forma regra alguma para o seu governo? Se é fechada para ele e não pode ser por ele estudada?

 

Se tal é o real estado das coisas, é pior que solene farsa. Prescrever ou prestar tal juramento afigura-se-me um crime.

 

Não é de todo indigno de nota que ao declarar que será a suprema lei do país, a Constituição a si mesma se nomeia em primeiro lugar e não dá tão alta graduação às leis dos Estados Unidos em geral, mas só àquelas que se decretarem para a execução da Constituição.

 

Assim a fraseologia particular da Constituição dos Estados Unidos confirma e corrobora o princípio essencial a todas as constituições escritas, segundo o qual é nula qualquer lei incompatível com a Constituição; e que os tribunais, bem como os demais departamentos, são vinculados por esse instrumento.

 

A notificação deve ser declarada de nenhum efeito.”24


Ruy Barbosa fincou a tradição de se dizer que “tudo começou nos Estados Unidos”, dos quais, não podemos negar, somos colônia, também, cultural, a ponto de já se ter afirmado que: “se é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

 

Fazemos este registro apenas para que o nosso leitor não tenha a mesma impressão de muitos no sentido de pensar que Marshall, num golpe de mágica, tirou da cartola todo o manancial teórico que expôs na sua famosa decisão. Aliás, a Constituição Americana era totalmente omissa quanto à possibilidade de controle jurisdicional de constitucionalidade das leis. Mais isso é assunto para o próximo escrito neste sítio.

 

O triunfo da burguesia (limitação do governo, já que “todo governo constitucional é limitado”) se consolidaria, definitivamente, se espraiando pelo mundo por sua enorme influência, com a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto 1789, tanto assim que a propriedade privada é elevada à condição de “direito inviolável e sagrado” .

 

Este documento que tornou-se um clássico para as democracias do mundo contemporâneo, foi aprovado pela Assembléia Constituinte, no contexto inicial da Revolução Francesa. Seus princípios iluministas tinham como base a liberdade e igualdade perante a lei, a defesa inalienável à propriedade privada e o direito de resistência à opressão.

 

Eis aqui a íntegra desse importante documento:

 

A Assembléia Nacional reconhece e declara em presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os direitos seguintes do homem e do cidadão:

 

I

Os homens nascem e permanecem livres e iguais perante a lei; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum.

 

II

O fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem; esses direitos são: a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.

 

III

O Princípio fundamental de toda autonomia reside essencialmente na nação; nenhuma corporação, nenhum indivíduo pode exercer autoridade que ela não emane expressamente.

 

IV

A liberdade consiste em fazer tudo que não perturbe a outrem. Assim, os exercícios dos direitos naturais de cada homem não tem limites senão os que asseguram aos outros membros da sociedade o desfrute desse mesmo direito; esses limites não podem ser determinados senão por lei.

 

V

A lei só tem o direito de proibir as ações que prejudiquem a sociedade.

 

Tudo quanto não for impedido por lei não pode ser proibido e ninguém é obrigado a fazer o que a lei não ordena.

 

VI

A lei é a expressão de vontade geral; todos os cidadão têm o direito de concorrer pessoalmente ou pelos seus representantes para a sua formação; deve ser a mesma para todos, seja os protegendo, seja ela os punindo.

 

Todos os cidadãos sendo iguais aos seus olhos, são igualmente admissíveis a todas as dignidades, lugares e empregos públicos, segundo as espectivas (sic. Respectivas?) capacidades e sem outras distinções que não sejam as das suas virtudes e as dos seus talentos.

 

VII

Ninguém pode ser acusado, preso, nem detido, senão nos casos determinados pela lei, e segundo as formas por ela prescritas. Os que solicitam, expedem, ou fazem executar, ordens arbitrárias devem ser punidos; mas todo cidadão chamado em virtude da lei deve obedecer incontinenti; ele torna-se culpado em caso de resistência.

 

VIII

A lei só deve estabelecer as penas estritas e evidentemente necessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legalmente aplicada.

 

IX

Todo homem é presumido inocente, até que tenha sido declarado culpado e se for indispensável será preso, mas todo rigor que não for necessário contra sua pessoa deve ser severamente reprimido pela lei.

 

X

Ninguém deve ser inquietado pelas suas opiniões, mesmo religiosas, desde que as suas manifestações não prejudiquem a ordem pública estabelecida pela lei.

 

XI

A livre comunicação das opiniões e dos pensamentos é um dos direitos mais preciosos do homem; todo o cidadão pode então falar, escrever, imprimir livremente; devendo responder pelos abusos desta liberdade em casos determinados pela lei.

 

XII

A garantia dos direitos do homem e do cidadão necessita uma força pública; essa força é então instituída para vantagem de todos e não pela utilidade particular aos quais é confiada.

 

XIII

Para manutenção da força pública e para os gastos de administração, uma contribuição comum é indispensável; ela deve ser igualmente repartida entre todos os cidadãos na razão das suas faculdades.

 

XIV

 

Os cidadãos tem o direito de constatar por si mesmo ou pelos seus representantes, a necessidade da contribuição pública, de a consentir livremente, de seguir o seu emprego, de determinar a quantidade e a duração.

 

XV

A sociedade tem o direito de pedir contas a todo agente público de sua administração.

 

XVI

 

Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não é assegurada, nem a separação dos poderes determinada, não tem constituição.

 

XVII

 

A propriedade sendo um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado se não for por necessidade pública, legalmente constatada, sob a condição de uma justa e prévia indenização25.

 

Dos princípios aí expostos, dois tiveram uma importância toda particular na Constituição de 1791:

 

a) o princípio da soberania do povo, exposto no artigo III.

 

b) o princípio da separação dos poderes, exposto no artigo XVI e emprestado dos escritos de Montesquieu.

 

Como em um país tão extenso como a França, a nação inteira não poderia exercer diretamente a soberania, ela delega poderes: seu governo é representativo.

 

Hobsbawm/Karl26 assim resumem a história desse triunfo:

 

“A transição do feudalismo para o capitalismo, entretanto, é um produto da evolução feudal. Começa nas cidades, pois a separação entre cidade e campo é o elemento fundamental constante da divisão social do trabalho, bem como sua expressão, desde o berço da civilização até o século XIX. Nas cidades, que, com o correr do tempo, ressurgiram na Idade Média, desenvolveu-se uma divisão do trabalho entre produção e comércio, às vezes como sobrevivência da antiguidade. Isto proporcionou a base de um comércio a grande distância e uma conseqüente divisão do trabalho (especialização de produção) entre diferentes cidades. A defesa dos habitantes dos burgos contra os senhores feudais e a interação entre as cidades produziu uma classe de burgueses, a partir dos grupos de moradores dos diversos burgos. ‘A burguesia desenvolveu-se gradualmente, na medida em que as condições para sua existência foram surgindo, dividiu-se de novo em diversas facções conforme a divisão do trabalho verificada e, finalmente, absorveu todas as demais classes possuidoras (enquanto, paralelamente, forma uma nova classe, integrada pelos não-proprietários e parte dos que até então eram possuidores: o proletariado). Estas transformações se produzem na medida em que as formas de propriedade existentes vão se transformando em capital industrial ou comercial’. Marx ainda acrescenta em nota: ''Primeiramente são absorvidos os setores de trabalho diretamente pertencentes ao Estado, depois todos os estamentos mais ou menos ideológicos.". 

 

 ___________________________________

 1 Para entender Heidegger. Petrópolis, Vozes, 2009: pp. 15-16.

2Introdução à obra Fromações Econômicas pré-capitalistas, de Karl Marx, Paz e Terra: 1991, 19.

3Westfália – “Foi consubstanciada em dois tratados, assinados nas cidades westfalianas de Munster e Onsbruck. Pelos tratados de Westfália assinados em 1648, foram fixados os limites territoriais resultantes das guerras religiosas, principalmente da Guerra dos Trinta Anos, movida pela França e seus aliados contra a Alemanha. A França, governada então, pelo Rei Luis XIV, consolidou por aqueles tratados inúmeras aquisições territoriais, inclusive a Alsácia. A Alemanha territorialmente prejudicada, beneficiou-se, entretanto, como todos os demais Estados, pelo reconhecimento de limites dentro dos quais teria poder soberano.” (Dalmo de Abreu Dalari, Elementos de Teoria Geral do Estado, Saraiva, São Paulo: 2001, p. 53)

4 O calendário revolucionário francês ou calendário republicano foi instituído pela Convenção Internacional em 1782, durante a Revolução (1779) para simbolizar a ruptura com a ordem antiga e o início de uma nova era na história da humanidade mundial. Este calendário tinha características marcadamente anticlericais e passou a basear-se nos fenômenos da natureza.Era um calendário de base solar composto de doze meses de 30 dias, distribuídos em três semanas de dez dias (decâmeros ou décadas). Os dias de cada década recebem o nome de primidi, duodi, trididi, quartidi, quintidi, sexditi, septidi, octidi, nonidi e decadi.

O dia foi dividido em dez horas de cem minutos, cada minuto com cem segundos. Cada dia tinha uma designação única, que só se repetiria no ano seguinte, com nomes de plantas, flores, frutas, animais e pedras. Aos 365 dias acrescentava-se, anualmente, um dia complementar, e um sexto a cada quadriênio, consagrados à celebração de festas republicanas. O ano começava no equinócio de outono (22 de setembro, no hemisfério norte), data da proclamação da República Francesa e os nomes dos meses eram baseados nas condições climáticas e agrícolas das estações em cada mês na França.

O primeiro mês chamava-se vindário (em referência a Víndima ou colheita de uvas), seguiam-se o brumário (relativo à bruma ou nevoeiro), o frimário (mês das geadas ou frimas em francês), o nivoso (referente à neve), o pluvioso (chuvoso)), o ventoso, o germinal (relativo à germinação das sementes), o floreal (mês das flores), o pradial (em referência a prados), o messiador (nome originário de messis, palavra latina que significa colheita), o termidor (referente ao calor) e o frutidor (relativo aos frutos); como cada mês tinha trinta dias, sobravam cinco dias no final do ano (de 17 a 21 de setembro): eram os dias dos sans-culottes, considerados feriados nacionais:

  • No outono:

  • Vindimário (vendémiaire): 22 de setembro a 21 de outubro

  • Brumário (brumaire): 22 de outubro a 20 de novembro

  • Frimário (frimaire): 21 de novembro a 20 de dezembro

  • No inverno:

  • Nivoso (nivôse): 21 de dezembro a 19 de janeiro

  • Pluvioso (pluviôse): 20 de janeiro a 18 de fevereiro

  • Ventoso (ventôse): 19 de fevereiro a 20 de março

  • Na primavera:

  • Germinal: 21 de março a 19 de abril

  • Florial (floréal): 20 de abril a 19 de mail

  • Pradial (prairial): 20 de maio a 18 de junho

  • No verão:

  • Messidor: 19 de junho a 18 de julho

  • Termidor (thermidor): 19 de julho a 17 de agosto

  • Fructidor: 18 de agosto a 20 de setembro

Esse calendário só vigorou de 22 de setembro de de 1792 a 31 de dezembro de 1805, quando Napoleão Bonaparte ordenou o restabelecimento do Calendário Gregoriano. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Calend%C3%A1rio_revolucion%C3%A1rio_franc%C3%AAs).

5Grafia segundo a tradução de Mario da Gama Kury da obra História, UnB, 1985.

6 ORDEM ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO, Revista Tributária e de Finanças Públicas, nº 32, RT, São Paulo: 2008, p. 165/176.

7Antes dela a Revolução Americana, que busca contestar os conceitos da monarquia européia - na sociedade americana se queria construir algo bastante diferente daquilo que se tinha na Europa.

8Publicada pela Editora Hucitec.

9Pablo Lucas Verdú, Teoría da la Constitución como Ciência Cultural, Dikinso, Madri: 1998, p. 23.

10 O areópago constituía-se de um conselho de membros da aristocracia ateniense, cujas atribuições, enquanto instância dos diferentes tipos de governo pelos quais Atenas passou, sofreram alterações ao longo do tempo. Entre seus membros, invariavelmente, eram escolhidos alguns que receberiam o título de arconte (uma espécie de "rei" ou "governante"), cada um responsável por um aspecto diferente do governo de Atenas.

11 Funcionamento das Instituições e Dispersão de Poderes

O órgão máximo de poder na democracia ateniense era, pelo menos em teoria, a assembléia (Ecclesia), a qual agregava a totalidade dos cidadãos na tomada de decisões. Esta reunia cerca de uma vez por mês, para discutir e votar leis, decidir sobre a paz e a guerra e nomear magistrados de todo o tipo. Respeitando-se o princípio da isegoria, todos os cidadãos podiam tomar a palavra na assembléia. Contudo, o que acontecia é que acabavam por emergir certos grupos de cidadãos que, pela sua influência, disponibilidade e talento oratório, conseguiam orientar e dominar as discussões e votações. Para tentar conter esta tendência, introduziu-se a disposição legal do ostracismo, pela qual um cidadão considerado demasiado influente podia ser afastado da vida política por um período até dez anos.

Como antecâmara das discussões e votações da Ecclesia, a Boulê (ou Conselho dos 500) era também uma instituição essencial. A sua função era preparar a ordem de trabalhos da Ecclesia, pelo que muito do poder efectivo se situava na Boulê. Com efeito, propostas demasiado controversas podiam ser rejeitadas por este órgão e nem sequer chegar à votação na Ecclesia. A Boulê compunha-se de 50 membros de cada uma das dez tribos surgidas com a reforma de Clístenes. Cada tribo ocupava a direcção durante cerca de 35 dias por ano, num regime de rotatividade que se estendia ao líder do órgão (o epístata), o qual mudava todos os dias.

Para além destes dois grandes órgãos, os strategoi, líderes militares, ocupavam igualmente cargos de muito poder. Estes eram cidadãos eleitos pela assembleia e que a ela deviam prestar contas, mas, na verdade, tinham larga autonomia e o seu poder e influência não se restringiam à esfera militar. Aliás, a este respeito, basta lembrar que Péricles, a figura mais importante do século V a. C. ateniense, foi um strategó. Depois, numa outra ala de poder, subsistiam ainda os arcontes, como herança do regime aristocrático. O seu poder era meramente simbólico, mas continuavam a possuir algum prestígio social e a presidir às cerimónias religiosas.

Por fim, importa referir o papel dos dois tribunais. O do Areópago havia transitado do regime aristocrático e julgava apenas casos muito específicos, tendo portanto um grau de intervenção pequeno na vida pública. Já o tribunal da Helieia, central no regime democrático, era composto por 6000 cidadãos (tirados à sorte) e decidia sobre a generalidade dos casos.

12O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. Porto Alegre: Sérgio A. Fabris, Editor, 1992.

13 Antígona - de Sófocles a Hölderlin, L&PM, Porto Alegre, 2000: p. 19.

14 Fontes: Sófocles, A Trilogia Tebana – Édipo Rei, Édipo em Colona e Antígona, tradução de Mário da Gama Kury, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

Ésquilo, Os Sete contra Tebas, tradução de Donaldo Schüler, Porto Alegre, L&PM, 2003.

P.S.: Sófocles não narrou o cerco de Tebas e como morreram os irmãos Poliníces e Etéocles na sua trilogia tebana, tendo a lacuna preenchida por outro dramaturgo, Ésquilo.

15“A MAGNA CARTA

A Magna Carta é realmente um documento notável. Eu a li durante a Feira Mundial de Nova York, em 1939. Ela atraiu uma multidão de dez milhões em apenas seis meses. Nove em cada dez americanos acreditam que é um pecado mortal esperar cinco minutos para ser atendido por um médico. E lá estavam dez milhões dispostos a esperar horas na fila pela oportunidade de passar um nanossegundo na frente de um pedaço de papel rasgado e sujo que a maioria não conseguiu nem ler.

Da mesma forma que outros documentos famosos, também existe certa controvérsia quanto à Magna Carta. Algumas pessoas dizem que ela é a "fonte da nossa liberdade". Outras dizem que não.

Depois de setecentos e cinqüenta anos, era de se esperar que os estudiosos já tivessem chegado a uma conclusão quanto a esse documento, mas não o fizeram.

Tudo o que sei é que se essa é a “fonte da nossa liberdade”, então estamos com problemas.

Lembra-se da hedionda prática medieval de julgamento por combate? Era legal sob a Magna Carta. E do julgamento por provação? Também era legal. (Em um julgamento por provação, o acusado podia provar a inocência mergulhando num barril cheio de piche fervente e sobrevivendo)

Julgamento através de júri? As pessoas dizem que a Magna Carta instituiu o julgamento por júri, mas não o fez. Em 1215 não havia júri na Inglaterra. Os suspeitos não tinham o direito de interrogar testemunhas, excluir fofocas das provas, produzir uma defesa ou mesmo de esconder a cabeça ao entrar e sair do fóruns.

E quanto ao direito de ser julgado por um júri de seus pares? Esse é, realmente, um direito que todo mundo deve ter e que pode ser encontrado na Magna Carta, como todo mundo acredita. É um dos diversos direitos importantes que podem ser encontrados no documento. A pegadinha é que apenas as pessoas livres podiam exercer os novos direitos listados na Magna Carta, e em 1215 apenas um pequeno número de britânicos era livre. Cinco sextos da população era de servos.

Então quem se beneficiou da Magna Carta? Os barões britânicos. Toda a conversa sobre a Magna Carta é sobre os novos direitos que eles conseguiram do rei para sua própria proteção. Mas a Magna Carta não deu ao inglês comum um direito a mais do que tinha antes.

Agora, só para esgotarmos os argumentos, vamos dizer que pode ser provado que a Magna Carta limitou o poder da monarquia inglesa. Isso não valeria algo para o inglês comum? A triste resposta é: "não". O inglês comum de 1215 não era oprimido pela monarquia, mas por seu barão senhorial.

A Magna Carta, de qualquer modo, não limitou tanto assim a monarquia. Foi depois dela que a Grã-Bretanha teve seus reis verdadeiramente tirânicos.

Então por que, se tudo isso é verdade, nós celebramos a Magna Carta hoje em dia? Porque há centenas de anos um inglês brilhante chamado Sir Edward Coke assim decidiu. Um belo dia ele anunciou que uma coisa chamada Magna Carta, que encontrara esquecida numa estante empoeirada de biblioteca, dava aos britânicos direitos que o monarca não poderia retirar. E foi assim. Daquele dia em diante os britânicos começaram a imaginar que seus direitos e liberdades tinham origem naquele documento, de que ninguém tinha ouvido falar antes." *

Depois da descoberta da Magna Carta, nenhum rei podia cuspir na calçada sem que alguém começasse a pular na sua frente, gritando: “Magna Carta, Magna Carta. Cuidado, companheiro!” Ela tirou toda a graça de ser rei.

O rei João, a propósito, não assinou a Magna Carta de verdade. Seu selo real foi carimbado em cera no documento. Todos os filmes de Hollywood que o mostram assinando estão errados. Um rei não se curvava a assinar qualquer coisa. (Muitos nem sabiam como fazê-lo.)

Não está em discussão que ele mereça ser lembrado como um mau rei. A questão é se ele foi mau ou muito mau. Ele perdeu a Normandia numa guerra fracassada em que deixou seus soldados no campo enquanto fugia para salvar a pele. Aparentemente assassinou seu primo Artur. E manteve a irmã de Artur numa cela de prisão por quarenta anos. Roubou a noiva de outro homem para si. Tomou reféns de seus barões para garantir a fidelidade deles, e então exigiu resgate pelos reféns ou os matou. E, apenas por diversão, prendeu a mulher e o filho de um ex-amigo, deixando-os morrer de fome.

Por outro lado, dizem que foi um administrador muito eficiente, um dos melhores que a Grã-Bretanha já teve.

O que mais incomodava os barões no rei era sua posição a respeito dos aluguéis. Era a clássica disputa entre proprietário e inquilino. Ele queria aumentar os aluguéis, os barões eram contra.

Aliás, os barões, quando se organizaram contra João, chamaram a si mesmos de "Exército de Deus". O exército de João era chamado de "Exército de João". Foi um confronto desigual desde o início”.

Fonte: Richard Schenkman, Lendas, Mitos e Mentiras da História do Mundo, Prestígio, Rio de Janeiro: 2002, p. 86.

16 Sir Edward Coke 1552-1634 foi presidente do Common Pleas (Tribunal de Petições Comuns) e do Kings Bench e é considerada como figura exponencial no nascimento do constitucionalismo inglês. Foi Coke “o grande inventor do mito da Magna Carta”. (Lenio, p. 238 a 241).

17  pp. 238/242.

18  Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Companhia_Holandesa_das_%C3%8Dndias_Orientais.

19Elaborada sob o reinado de Felipe II, da Espanha, a época em que também reinava sobre Portugal.

20 Lenio Luiz Streck, Jurisdição Constitucional e Hermenêutica, Livraria do Advogado, Porto Alegre: 2002, p. 226.

21  O federalista. Brasília: Ed. Universidade de Brasília, 1984.

22  No voto original: "It is not then on account of the worthlessness of the thing pursued that the injured party can be alleged to be without remedy." Melhor tradução seria: "Não será, portanto, em razão da vilania da coisa em litígio que a parte lesada poderá ser argüida de falta de recurso."

23 No voto original: "If one of the heads of departments commits any illegal act under colour of his office by which an individual sustains an injury." Melhor tradução seria: "Se um dos chefes de departamento, em razão de seu ofício, cometer qualquer ato ilegal, de que resulte prejuízo para alguém."

24 Decisões constitucionais de Marshall, tradução de Américo Lobo, reimpressão do Ministério da Justiça, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1903, p. 1-29, série Arquivos do Ministério da Justiça (atualizou-se a grafia).

25 Fonte: http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=180.

26 Obra citada, p. 31/32.